O debate sobre o assunto está longe de ser consensual, mas o governo federal uniu extremos quando aprovou a Medida Provisória que abre espaço para a privatização astuciosa da Eletrobras. A reação foi unânime: liberais e não-liberais discordaram do modelo. Signatária máxima do empresariado brasileiro, a Fiesp estima que os consumidores pagarão cerca de R$ 400 bilhões. Isso em um universo de arrecadação de apenas R$ 20 bilhões, com a privatização. A conta não fecha, mas a explicação é simples. O governo precisou ceder a acordos e incluiu uma série de “jabutis” para beneficiar seus aliados políticos. A privatização às avessas expõe o modus operandi do governo e reafirma a inconsistência do ministro Paulo Guedes — um liberal de araque.

PARCEIRO O senador Rodrigo Pacheco: atuação na defesa de todas as propostas do presidente (Crédito:Mateus Bonomi )

Além de empresários ligados aos parlamentares, os aliados mais fiéis ao presidente estão na lista dos beneficiados. O presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, emplacou a construção de uma usina a gás no Triângulo Mineiro. O senador piauiense, Ciro Nogueira, incluiu nas negociações uma indenização de R$ 700 milhões para o seu estado em contrapartida à privatização da Companhia Energética do Piauí. A emenda de Mecias Jesus obteve a aceleração da linha de transmissão de Manaus até Boa Vista, em Roraima. Já na Câmara, o deputado baiano Elmar Nascimento conseguiu obrigar o governo a contratar usinas termelétricas por 15 anos. Na prática, a desestatização da Eletrobras não dará a prometida autonomia longe dos interesses políticos. O assessor jurídico da Frente Parlamentar Mista em Defesa do Serviço Público, Bruno Fischgold, alerta para a “previsão de aumento de até 20% nas contas de energia”.

Interferência política

A privatização da estatal era preparada desde o governo Michel Temer e tinha um projeto elogiado pelo setor privado. Com a interferência dessas emendas de última hora, porém, entidades do setor elétrico avaliam que o custo ao governo para cumprir com os novos compromissos podem custar R$ 84 bilhões. O culpado não é novo: o Centrão entrou com tudo para influenciar na privatização. O professor de economia, Vladimir Maciel, afirma que a manobra foi apenas uma maneira de fazer uso político da estatal e que o ministro da Economia sabe que foi um “acordão que não diminui a dívida pública, nem reduz a interferência política na Eletrobras”. Maciel diz que Guedes perde cada vez mais força do ponto de vista político e técnico e está entregue às negociações da velha política, que protege os interesses do presidente.

Na avaliação preliminar de especialistas, a MP corre grande risco de ser judicializada. Alguns princípios não foram observados, como a manutenção de uma tarifa menor para o usuário. A Empresa de Pesquisa Energética (EPE) foi ignorada, mas seria dela a atribuição de fazer a análise das diretrizes do setor – não o Congresso. Também há uma proposta de reserva de mercado para a contratação de termelétricas e hidroelétricas por 20 anos. A oposição já acenou com ação no Supremo Tribunal Federal destacando as irregularidades. Também tem pesado para o risco de um apagão elétrico. O ministro das Minas e Energia, Bento Albuquerque, nega veemente o perigo, mas a crise hídrica, e a possível retomada da economia, colocam o setor em alerta. Guedes sugeriu uma solução: criar novas bandeiras tarifárias para barrar a necessidade de racionamento. Solução simplória e a conta, como sempre, fica com o consumidor.

Com um pensamento diferente dos liberais, o senador Veneziano Vital do Rêgo lamentou a MP. Ele é contrário à privatização e disse “que o Brasil vai perder um patrimônio nacional de valor inestimável”. O senador Plínio Valério classificou a aprovação de “vergonhosa”. O “jabuti” deu cria”, acusou. A cientista política Juliana Fratini analisa que houve um “atendimento da base clientelista do governo porque muitos parlamentares fizeram o cálculo de como poderiam se beneficiar”. O que aconteceu foi a privatização do Estado — mas para um grupo político.