13/06/2016 - 18:15
Quando eu tinha lá pelos oito anos, no início dos anos 70, um tio costumava se gabar dessa história.
Dizia ele que, quando era moleque por volta de 1945, um de seus vizinhos tinha um empregado “bicha”.
Antigamente ninguém era gay ou homossexual.
Era bicha.
Pois bem.
Segundo ele, era uma espécie de faz-de-tudo da casa.
– Era um sujeito baixinho, sempre muito sorridente e atencioso. Levava uma bandeja com copos de água quando jogávamos bola na rua.
A história seguia contando que, certa vez, os meninos do bairro chamaram o bicha para encontrá-los atrás de uma estação de trem.
Marcaram a hora e foram.
Quando o bicha chegou – meu tio contava cheio de orgulho – os meninos o espancaram até as margens de deixá-lo inconsciente.
Esse meu tio se orgulhava especialmente de um chute que havia acertado na boca do rapaz.
– E não é que o bicha continuava servindo aguinha pra gente no futebol? – e terminava a história rindo alto.
A história era contada frequentemente.
Com absoluta naturalidade.
Não conseguia rir como ele.
Com oito anos, lembro que não me sensibilizava especialmente com a vítima.
Eu nem sabia direito o que era “bicha”.
Não ria porque sentia que havia um desencaixe qualquer entre aquele meu tio, um sujeito bonachão, engraçado e essa história tão violenta.
Ele não percebia isso.
Ninguém na casa percebia, nem nunca tentaram evitar que repetisse esse conto.
Passa o tempo.
Lá pelos dez anos, tive um colega homossexual na escola.
Naquela época, era raro que um garoto de doze anos assumisse sua homossexualidade.
Ainda não é tão comum hoje, afinal.
Então Nilson era só a piada entre os amigos.
O garoto esquisito que não falava com ninguém.
Um dia, para surpresa geral, Nilson distribuiu um convite para sua festa de aniversário que aconteceria num sábado, no salão de festas do seu prédio.
Minha mãe, que sempre entendeu tudo, disse que eu iria à festa mesmo sob protestos de que o garoto não era meu amigo.
Fui.
Ninguém mais foi.
Só os parentes próximos do menino estavam lá.
Cantamos parabéns, troquei duas ou três palavras com ele e a festa acabou apenas uma hora depois de começar.
Lembro que sobrou de tudo.
Brigadeiros, lembranças, bolo.
Lembro da tristeza que me deu por não haver mais ninguém ali.
De novo, não associei sua homossexualidade ao que aconteceu.
Nilson era só “aquele garoto esquisito”.
Na faculdade e no trabalho convivi com diversos homossexuais.
Da década de 80 para cá, no ambiente de uma Faculdade de Comunicação e em Agências, os gays não precisavam mais se esconder.
Não havia nenhum preconceito explícito.
Era bem pior do que isso.
Por mais seguros de sua condição, por mais livres que fossem, continuaram foco de piadas.
Piadas escondidas, covardes.
Piadas.
Isolamento.
Violência.
Setenta anos depois da triste história do meu tio.
Setenta.
Anos.
Pense nisso.