RESUMO

• Identificado ao acaso por um historiador, quadro iria a leilão com autoria desconhecida
• Passou pelo crivo de quatro especialistas e foi autenticado como obra-prima do italiano Caravaggio

Em abril de 2021, uma pintura a óleo de Jesus com coroa de espinhos estava prestes a ir a leilão na tradicional casa Ansorena, em Madri, na Espanha. A pintura de 1,1 metro por 84 centímetros havia sido atribuída a um aluno de José de Ribera, artista espanhol do período barroco, com lance inicial previsto em apenas US$ 1.600 — pouco mais de R$ 7.500. Um dos interessados enviou uma fotografia da pintura ao historiador de arte Massimo Pulini, professor da Academia de Belas de Artes de Bolonha, na Itália. O especialista levou apenas seis minutos para responder: tratava-se, sem dúvida, de uma obra perdida do mestre italiano Caravaggio.

Pulini alertou o Ministério da Cultura da Espanha sobre a relevância do quadro, que imediatamente suspendeu o leilão. “Identificar uma pintura de Caravaggio é equivalente a encontrar um capítulo perdido de uma comédia de Shakespeare”, afirmou o professor. “A espiritualidade radical da pintura não envelheceu em nada e sua linguagem ainda é verdadeira.” Agora, quatro séculos após ter sido criada, Ecce Homo — que significa “Eis o Homem”, em latim — está em exibição desde a semana passada no Museu Nacional do Prado, em Madri. “É uma das maiores descobertas na história da arte”, declarou o diretor Miguel Falomir, na inauguração da obra.

Existem apenas 60 obras conhecidas de Caravaggio, o que confere à pintura um “valor extraordinário”, acrescentou. Segundo a mídia espanhola, a pintura foi comprada por um milionário britânico que vive no país por US$ 39 milhões — quase R$ 200 milhões. Ecce Homo está emprestado ao museu até meados de outubro.

Pintado por Caravaggio entre 1605 e 1609, apresenta o tradicional chiaroscuro, estilo pelo qual o mestre ficou conhecido, com fortes contrastes entre luz e sombra, além de cenas dramaticamente poderosas.
Jesus está no centro da composição, com vívidas gotas de sangue sobre sua pele pálida. A tela traz ainda o governador Pôncio Pilatos e um soldado romano.

A descoberta inspirou um ágil processo em torno de sua autenticação. Ao contrário de outras obras que suscitaram polêmica, como Salvator Mundi, atribuída com certa dúvida a Leonardo DaVinci e comprada pelo príncipe saudita Mohammed bin Salman por US$ 450 milhões, não houve dúvidas a respeito da autenticidade da pintura.

Pintada entre 1605e 1609, Ecce Homo é uma das 60 telas do artista italiano e foi vendida por quase R$ 200 milhões — após ter sido avaliada em apenas R$ 7.500 pelo leiloeiro espanhol

Após uma investigação aprofundada relizada por Claudio Falcucci — engenheiro nuclear especializado em técnicas científicas aplicadas ao patrimônio cultural —, Ecce Homo foi submetida aos quatro maiores especialistas em Caravaggio em todo o mundo:
Maria Cristina Terzaghi, professora de História da Arte Moderna na Universidade Roma Tre e membro do comitê científico do Museo di Capodimonte em Nápoles;
Gianni Papi, historiador de arte;
Giuseppe Porzio, professor de história da arte na Universidade de Nápoles L’Orientale e membro dos comitês científicos do Pio Monte della Misericordia e do Palácio Real em Nápoles;
e Keith Christiansen, curador do The Metropolitan Museum of Art, de Nova York.

Todas as características da obra foram comprovadas: as circunstâncias de sua descoberta, a proveniência, os aspectos estilísticos, técnicos e iconográficos. A decisão foi unânime. Veio então o processo de restauração, realizado de maneira rigorosa pelo especialista Andrea Cipriani, sob a supervisão do governo regional da Comunidade de Madri.

Caminhos misteriosos

Embora não se saiba para quem a obra foi criada, o museu informou que ela apareceu pela primeira vez nos bens de um vice-rei napolitano e, em algum momento, foi catalogada como parte da coleção do rei espanhol Filipe IV. Teria, na sequência, sido herdada por seu filho, Charles II. A partir daí, seus caminhos são misteriosos. O quadro teria sido encaminhado para a Real Academia de Belas de Artes de São Fernando, em Madri, antes de ser repassado para um diplomata e, posteriormente, para o primeiro-ministro Evaristo Pérez de Castro, em 1823. Quando ele morreu, a obra sumiu de vista — até reaparecer no leilão, em 2021.

Uma das maiores descobertas das artes é exibida no Museu do Prado
Caravaggio, retratado em pintura de Auguste Bigand: brigas e escolha de prostitutas e pessoas em situação de rua como modelos (Crédito:Divulgação )

Nascido em Milão, Michelangelo Merisi da Caravaggio teve uma vida tumultuada, com passagens por diversas cidades italianas.
Cresceu órfão, após a peste bubônica matar todos os homens de sua família, quando tinha apenas seis anos.
Em 1606, matou um homem durante uma briga em Roma e vagou entre Nápoles, Malta e Sicília, para fugir da pena de morte.

Para representar episódios bíblicos, gostava de escolher como modelos prostitutas e pessoas em situação de rua. Problemático e boêmio, tinha problemas com a polícia e vivia sem dinheiro. Com um pincel nas mãos, no entanto, foi um dos maiores gênios da história da arte.