Em 1916, a jovem Agatha, de 26 anos, trabalhava como voluntária durante a Primeira Guerra Mundial em um hospital da Cruz Vermelha em Torquay, cidade portuária inglesa onde nasceu e vivia com o marido, o coronel Archibald Christie. Nas horas vagas, ela e a irmã, Madge, dedicavam-se à leitura de romances de Sir Arthur Conan Doyle e Edgar Allan Poe. Ao comentar que seria capaz de escrever tramas como aquelas, foi desafiada pela irmã a fazer uma história em que os leitores não conseguissem identificar o culpado pelo crime até o final do livro. Aceitou a provocação: inspirada pela personalidade pomposa dos políticos europeus que se refugiavam na Inglaterra em virtude da guerra, decidiu atribuir a nacionalidade belga a seu protagonista, um detetive irônico e cheio de manias. Com conhecimento sobre remédios (e venenos), decorrente do trabalho no hospital, criou um caso em que a vítima era envenenada. Estrelado pelo detetive Hercule Poirot, “O Misterioso Caso de Styles” foi publicado em 18 capítulos pelo suplemento literário do jornal inglês “The Times” em 1920. Nascia ali o mito Agatha Christie, a “Rainha do Crime”, escritora mais vendida e traduzida da história.

A autora inglesa possui diversos recordes literários. Publicou 66 livros, além de dezenas de contos e peças de teatro. Suas obras já foram traduzidas para 50 idiomas e publicadas em mais de 100 países. Vendeu mais de dois bilhões de cópias e é dona de outra marca curiosa: seu texto “A Ratoeira” é a peça de teatro encenada há mais tempo na história do teatro inglês. Está em cartaz desde 1952, quando estreou no St. Martin’s Theatre, em Londres. Em março desse ano, devido à pandemia, teve as sessões interrompidas após uma sequência de 28 mil apresentações.

Apesar de sua discrição – “ela gostava mais de ouvir do que falar e preferia observar a ser vista”, segundo seu neto Mathew Prichard –, há um episódio misterioso na vida de Agatha Christie que poderia estar em um de seus livros. Aconteceu logo após sua separação, em 1925. Archie, o marido, havia viajado com a amante, Nancy Neale. Agatha Christie saiu de casa dirigindo, mas seu carro foi encontrado abandonado perto de um lago. Vazio. Mais de quinze mil voluntários saíram à sua procura, mas havia poucas pistas: apenas um casaco de pele e uma mala abandonados no automóvel. Duas semanas depois, ela foi encontrada em um hotel, onde havia se hospedado como Teresa Neale (mesmo sobrenome da amante do marido), dizendo que era uma turista sul-africana. Interrogada pela polícia, contou que havia sofrido um ataque de amnésia. Até hoje não se sabe se foi um problema de saúde verdadeiro, um plano vingativo para que o marido fosse acusado de assassinato ou apenas um golpe de marketing para o livro recém-lançado, “O Assassinato de Roger Ackroyd”.

SUSPENSE A atriz Gal Gadot em “Morte no Nilo”: integrando um elenco de peso (Crédito:Divulgação)

Vida de aventuras

A vida de Agatha Christie mostrou-se providencial para a carreira de escritora. Além de viajar o mundo nos anos 1920 com a família, casou-se novamente em 1930 com o arqueólogo Max Mallowan. Foi um escândalo: ela tinha 40, ele, 25. Viajaram pelo Leste Europeu e Oriente Médio, experiência imortalizada em clássicos como “Assassinato no Oriente Express”, “Morte no Nilo”, “Morte na Mesopotâmia” e “Aventura em Bagdá”, entre outros — muitos deles adaptados para o cinema.

Celebrando os 100 anos de seu primeiro livro, a editora HarperCollins lança no Brasil uma nova coleção dedicada à autora, com novas traduções e edições de luxo com capa dura. Ao longo dos próximos anos, serão publicadas cerca de 80 obras, intercalando os maiores sucessos com títulos fora de catálogo há anos. “A importância de apresentar a obra de Agatha Christie para a mais nova geração de leitores é evidente”, afirma Alice Mello, gerente editorial da HarperCollins. “É preciso eternamente “reintroduzir” os livros da autora para que seu nome permaneça no lugar de destaque que merece na literatura.”

“MORTE NO NILO” O detetive Hercule Poirot embarca em nova adaptação cinematográfica: Agatha usava experiências pessoais (Crédito:Divulgação)

As novas edições feitas por uma nova geração de tradutores e escritores integra esse movimento de renovação. “Agatha Christie tece uma mistura bem curiosa de referências cultas, que vão de Shakespeare e Tennyson ao noticiário policial sensacionalista”, afirma o tradutor Samir Machado de Machado. “Sua obra deve ser tratada como uma série de clássicos literários do século XIX.” Érico Assis, tradutor responsável por “Assassinato no Oriente Express” e “Morte no Nilo”, era fã da autora quando adolescente e acredita que seu estilo não envelheceu. “Sua linguagem é envolvente e seus personagens são tão cativantes quanto eram décadas atrás”, afirma. O tradutor lembra de um episódio curioso. Costumava ler os romances na biblioteca da escola onde estudava, na cidade de Pelotas, no Rio Grande do Sul. Ao visitar o local recentemente, tentou achar as edições antigas, mas se decepcionou: “O bibliotecário me disse que seus livros foram retirados das prateleiras porque eram muito violentos”.

Agatha Christie tinha um método particular de escrever. Fazia anotações em diversos cadernos, com possíveis nomes de personagens e ideias para tramas. Há mais de cem deles expostos em museus ingleses. “Carrego meia-dúzia de cadernos e anoto informações sobre um novo veneno ou detalhes de um crime que li no jornal”, explicou a autora. Ela escrevia muito rápido, lançava dois livros por ano. Chegou a escrever “Ausência na Primavera” em um fim de semana. Com a invenção do gravador, passou a ditar as histórias em voz alta, depois datilografadas por uma secretária. Segundo o neto, depois que os livros estavam prontos, a avó escritora costumava ler um ou dois capítulos para a família depois do jantar. “Acho que ela nos usava como cobaias para antecipar a reação dos leitores”, afirma Prichard. “Após alguns meses, aquelas histórias iam parar nas livrarias do mundo inteiro.”

“Não é bom se deixar levar pela imaginação. A explicação mais simples é sempre a mais provável” Hercule Poirot, detetive

POIROT Kenneth Branagh: depois de Shakespeare, adaptações da autora inglesa (Crédito:Divulgação)

Apesar de Hercule Poirot ser seu personagem mais famoso, Agatha também imortalizou uma investigadora feminina quando isso ainda não era comum. Inspirada em sua avó, Miss Marple era uma senhora simpática e bem-humorada, sempre mais inteligente que a polícia. Em suas obras há ainda o casal de jovens espiões Tommy & Tuppence, e protagonistas menos conhecidos como Harley Quin, Parker Pyne e Ariadne Oliver, inspirada em uma famosa política da época. Em comum, todos eles eram sagazes conhecedores da psique humana e de eventuais motivações para crimes.

Vida própria

Suas criações eram tão reais que ganhavam vida própria. Quando Hercule Poirot “morreu”, no romance “Cai o Pano”, publicado em 1975, o personagem mereceu um obituário de página inteira no jornal “The New York Times” como se fosse um cidadão normal. Apesar de ter escrito a morte de seu protagonista em 1940, Agatha Christie guardou ardilosamente esse segredo até a publicação de seu último livro. No ano seguinte, em 12 de janeiro de 1976,
aos 86 anos, foi a vez da escritora dizer adeus a seus leitores. Bem, pelo menos é isso o que diz a versão oficial.

Adaptações recentes

Lançamentos
Coleção Agatha Christie

A obra está sendo relançada pela HarperCollins, editora que publicou originalmente quase todos os livros da autora. “As novas edições misturam retrô com moderno para atrair um público novo sem perder o cativo” , diz Túlio Cerquize, que assina o projeto gráfico. Preço médio sugerido: R$ 44,90