Ninguém sairá ileso desta pandemia. Nem mesmo aqueles que conseguiram tirar algo de bom deste período de isolamento, que reviram suas prioridades, não pegaram o vírus, não perderam ninguém – nem o emprego. O dano está aí, esse trauma deverá ser elaborado individualmente e coletivamente, e talvez leve uma geração para voltarmos a nos sentir seguros. Essa é a opinião do escritor e palestrante americano Andrew Solomon, autor de O Demônio do Meio-Dia, um importante livro sobre depressão.
Em entrevista ao Estadão, ele explica que, quando tudo voltar a ser o mais próximo do que era quando o coronavírus nos isolou uns dos outros, será fácil para a maior parte dos adultos retomar suas vidas e suas relações de amizade. A preocupação é com as crianças.
“Está sendo muito difícil para elas. As crianças precisam do alimento da interação com outras crianças. A falta disso é venenosa”, comenta. Um de seus filhos, George, de 11 anos, começou a sentir os efeitos do isolamento. Para minimizar o impacto, Solomon e o marido decidiram flexibilizar um pouco e receberam amigos do garoto e seus pais para o fim de semana por entender, àquela altura, que o risco psicológico que George corria era mais sério do que o risco de a família contrair o vírus. Foi uma decisão complicada e difícil, ele diz, mas necessária.
Solomon reconhece que se tornou mais próximo do filho e mais envolvido com tudo em casa. “O tempo que passamos juntos é inestimável e importante. Mas também sei que isso teve um custo para o George e, por consequência, teve um custo para todos nós.”
Muitas crianças estão sofrendo e lutando nesta pandemia e deverá haver uma grande adaptação para elas também. “É tentador para os pais dizer ‘ok, vai ter uma vacina e talvez em seis meses a gente volte para a vida normal’. Não. As crianças deverão ser ressocializadas. Elas terão de ser reintroduzidas em seus círculos sociais e vão ter que recuperar hábitos de interação perdidos”, diz. “Essas crianças vão ter que tentar retomar a infância interrompida. E isso vai ser um fardo enorme e pesado para elas e para a sociedade em volta delas”, completa.
O impacto da pandemia para saúde mental
Andrew Solomon, 57 anos, conhece, por experiência própria e muita pesquisa, tudo sobre depressão e ansiedade. O autor de O Demônio do Meio-Dia (Companhia das Letras) conversou com o Estadão sobre os impactos da pandemia na saúde mental, pelo Zoom, dias antes da vacina contra o coronavírus ser aprovada nos Estados Unidos.
Estamos entrando no 9º mês de uma pandemia que transformou nossas vidas. Passamos, individualmente e coletivamente, por várias fases. Sentimos medo, ansiedade. Alguns vivenciaram situações de pânico e depressão. Muitos negaram a situação. Houve uma certa flexibilização, para então tudo piorar. Onde estamos neste momento, no que diz respeito ao nosso ânimo diante do coronavírus? E como isso pode influenciar nas nossas próximas ações e no futuro da humanidade?
Com a vacina, podemos pensar, realisticamente, que isso não vai continuar para sempre. Mas, ao mesmo tempo, enfrentamos uma grande fadiga, a fadiga da quarentena. Ao fim de nove meses, já não é mais uma experiência em que encontramos sentido ou descobrimos coisas novas. Algumas foram transformadas por isso. Outras reavaliaram suas prioridades e às vezes saíram com prioridades melhores. Mas há muita solidão e uma grande sensação de isolamento. Nas relações adultas, se não vemos outras pessoas por alguns meses, esse relacionamento não muda exatamente. Já nos relacionamentos infantis, que têm um impacto não só nas crianças, é diferente. Meu filho tinha 10 anos quando isso começou. Ele tem agora 11 anos e meio e é, em muitos aspectos, uma pessoa diferente do que era. Seus amigos também são pessoas diferentes e é difícil sustentar essas amizades por esse período. Há uma tendência de as pessoas começarem a dizer que não podem viver assim para sempre e relaxar a guarda. E com as pessoas relaxando a guarda, e há uma necessidade psicológica em se fazer isso, comete-se um erro terrível com relação à saúde.
Todo mundo está tendo que negociar esse equilíbrio entre saúde física e mental – particularmente quem vive sozinho, mas também quem está numa família em que se enlouquecem mutuamente. É preciso expertise interna para balancear sua saúde física e mental e para decidir quais riscos valem a pena. E quem mais tem condição de fazer isso são as pessoas com mais privilégio e maior grau de instrução. Essa é mais uma prova de como a pandemia afeta mais os menos favorecidos que a gente.
Ao redor do mundo, há pessoas fazendo escolhas questionáveis.
Existe uma questão sobre o público e o privado, sobre o direito de um e o do outro, que é pouco discutida. Pessoas vão à praia e andam na rua sem máscara. Festas e reuniões sociais voltaram. Empregadas domésticas e babás também voltaram ao trabalho. Diria que a pandemia evidenciou ainda mais nossa falta de compreensão a respeito do que significa viver em comunidade?
Sim. E o exemplo mais óbvio desse problema é a questão da máscara. Há quem proteste, dizendo que elas são incômodas e desnecessárias, que não acreditam na pandemia ou que sua liberdade pessoal está sendo comprometida. Mas a maioria das pessoas usa cinto de segurança no carro. Pessoas se comprometem com muitas outras atividades e comportamentos, há muitos contratos sociais com os quais concordamos. A histeria que cerca a resistência de usar máscara é lunática. E a máscara tem duas funções: proteger quem está usando e as outras pessoas. Qualquer um com adequada noção de vida em comunidade tem que reconhecer que mesmo que opte por correr riscos é injusto e cruel colocar em risco a saúde de outros. Há essa insistência na questão da liberdade individual. Eu não tenho liberdade individual de dirigir bêbado. Abro mão disso para proteger outras pessoas, e a mim também. O egoísmo de quem se recusa a usar máscara é uma manifestação nojenta do lado mais feio das sociedades modernas.
E isso está correlacionado com os processos que levaram à terrível liderança incompetente que, tanto nos Estados Unidos quanto no Brasil, permitiu a escalada dessa crise para proporções absurdas e horríveis que não precisava ter alcançado.
Em muitos países, o coronavírus começou a se espalhar entre a população mais rica para então atingir os mais pobres – e, sem a possibilidade de receberem os mesmos cuidados, os efeitos foram ainda mais devastadores para essa população. A desigualdade social também se reflete nos cuidados com a saúde mental?
A desigualdade social se reflete ainda mais no cuidado com a saúde mental do que no cuidado com a saúde física. Em certo sentido, nesta pandemia, é chocante a ideia da morte como grande equalizador – de que vamos morrer independentemente de nossa situação. Hoje, mais pessoas desfavorecidas estão morrendo. A taxa de contaminação é mais alta entre essa população, e a de morte também. A primeira questão com relação à saúde mental é o acesso ao tratamento. Mesmo em países como uma boa rede de assistência social em saúde, esse acesso permanece desigual, e permanece assim porque ele requer, em primeiro lugar, que se tenha um diagnóstico. Se você é uma pessoa próspera com uma vida boa e se sente mal, você liga para o médico e ele te atende. Se você está mais embaixo no estrato social, sentir isso não parece tão bizarro e irracional e você não reconhece como uma doença, apenas como parte do curso natural das coisas. E se você não reconhece o problema, é mais difícil ter acesso a tratamento. E, finalmente, no tratamento da saúde mental, os menos favorecidos não têm condição de medir seu funcionamento porque eles não têm todas as prerrogativas que nós temos, e é mais provável que continuem com tratamentos insatisfatórios do que tenham acesso a tratamentos de primeira classe. E, com terapia ou medicação, o tratamento de doenças mentais requer tempo e foco do psiquiatra ou psicólogo – e geralmente eles têm mais tempo e foco para tratar quem pode pagar mais. A disponibilidade de cuidados de saúde mental é muito segregada.
Não é fácil para quem está sozinho, não é fácil para quem está acompanhado. Famílias viveram intensamente o isolamento. Houve fortalecimento e esgarçamento de laços. Houve aumento da violência doméstica, de abuso sexual. Conhece algum plano para o enfrentamento da pandemia que inclua um olhar para a saúde mental?
Quando a pandemia começou em Wuhan, houve um movimento para ajudar os profissionais do sistema de saúde da China a ajudar as pessoas. O modelo estava lá desde o começo, mas não foi seguido por sociedades ocidentais. Há pessoas morrendo também por causa da dimensão mental disso tudo. Uma das coisas que a depressão faz é abater o seu sistema imunológico. Se você não está se sentindo deprimido, então você tem mais chance ter um sistema imunológico capaz de combater melhor esse vírus. As pessoas estão em risco por causa de sua saúde mental precária. E pessoas com a saúde mental precária acabam se sentindo mais fatalistas até o ponto de não poderem fazer mais nada com relação ao vírus. Elas correm riscos bobos e cometem erros. Este é um momento muito perigoso ao qual chegamos. O aspecto mental é realmente importante – e também porque tentamos ter uma sociedade que funcione. Se numa sociedade todo mundo está perdido na teia da depressão, ninguém consegue fazer o seu trabalho ou levar as coisas adiante. E as consequências são verdadeiramente trágicas.
Esse trauma será tratado individualmente e coletivamente?
A única forma de resolver o trauma social é que cada indivíduo lide com seus traumas individuais. Enquanto sociedade, nunca teremos a sensação de invencibilidade que tínhamos um ano atrás. A necessidade de enfrentarmos a percepção de instabilidade que se instalou como um fenômeno social é enorme. Se quisermos que as pessoas sintam-se seguras novamente, teremos que descobrir como lhes garantir a segurança. Acho que será necessária uma geração para se chegar a essa sensação de segurança. Vamos viver com um medo social que vai afetar toda a nossa visão de mundo. E vai demandar um grande esforço de políticos e cientistas sociais para formular maneiras para tentar livrar a população desse terror.
Alguém vai sair ileso?
Alguns sairão mais fortes e outros mais machucados – mas ninguém sairá ileso. Para alguns, o lado positivo vai superar o negativo. Mas o dano ainda estará lá. O dano está afetando absolutamente todos.
E o que você aprendeu, particularmente, com a pandemia?
Primeiro que passar tempo em rotinas em casa é muito mais rico do que eu imaginava. Não vou voltar para a vida agitada que eu tinha. E penso o tempo todo nas últimas palavras da minha mãe. Ela estava no quarto com meu pai, meu irmão e eu e disse: ‘Procurei por tantas coisas nessa vida e o tempo todo o paraíso estava aqui, com vocês três’. Quero viver uma vida baseada, em certo sentido, nessa ideia.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.