Da chegada do PT ao poder a frente ampla contra Bolsonaro: enquanto alguns analistas falam em morte da esquerda e necessidade de renovação de pautas, outros destacam resiliência petista, com Lula liderando pesquisas.Depois do trauma da ditadura militar (1964-1985), a reconstrução do Brasil se deu por meio da Constituinte de 1987-88. Mas a solidificação da democracia veio a partir dos anos 1990, com a eleição e a reeleição de Fernando Henrique Cardoso (PSDB), e, no início do século 21, com a chegada do PT ao poder, com Luiz Inácio Lula da Silva, em 2003, avaliam especialistas.

Embora de espectros políticos diversos, ambas as legendas tinham como marca um ponto importante: foram fundadas como oposição aos escombros da ditadura militar, na década de 1980. E seus quadros eram formados, majoritariamente, por pessoas que em algum momento haviam lutado contra a ditadura e, portanto, tinham ou tiveram o rótulo de esquerdistas.

De social-democrata, o PSDB cada vez mais foi se posicionando ao centro, depois centro-direita — hoje direita moderada. O PT, de esquerda, acabou se consolidando como centro-esquerda. E até o surgimento do fenômeno Jair Bolsonaro, de extrema direita, eram essas as duas principais forças políticas que brigavam pelo voto do eleitor brasileiro.

A direita, e a direita mais extremista, conquistou espaço por uma conjuntura que uniu a descrença nos partidos políticos tradicionais — então personificados no PT, que ocupava o poder — a partir das manifestações de 2013 e, principalmente, do impeachment da então presidente Dilma Rousseff, em 2016, e com a popularização de redes sociais e aplicativos de troca de mensagens.

Para o cientista político Leonardo Bandarra, pesquisador do German Institute for Global and Area Studies (Giga), em Hamburgo, o PT perdeu o bonde dessa popularização justamente porque estava no poder. “Isso levou a uma institucionalização maior das estratégias do partido, até pela questão das alianças”, comenta. “Enquanto isso [os movimentos de direita] estavam em comunicação com uma massa mais jovem da sociedade e mesmo as mais velhas, por meio de redes sociais, de Twitter, Instagram…”

“A extrema direita conseguiu usar isso de forma muito eficiente. Os lava-jatistas [defensores da Operação Lava Jato] também, com difusão de memes e tudo. O MBL [Movimento Brasil Livre, liberal-conservador de direita, criado em 2014] soube atrair assim, tanto jovens quanto um público de meia-idade”, acrescenta Bandarra.

“Colapso do lulismo” e renovação de pautas

O filósofo Vladimir Safatle, professor na Universidade de São Paulo (USP), acredita que a esquerda brasileira precisa urgentemente renovar suas pautas para que volte a ter relevância e protagonismo político.

“Muitas vezes ouvimos o discurso de que a esquerda não sabe mais falar com povo. Eu diria que é muito pior: é que não tem mais o que falar com o povo”, comenta ele, que acaba de lançar o livro Só Mais Um Esforço, em que analisa o que ele chama de “colapso do lulismo” a partir das manifestações de 2013.

Para Safatle, “existem milhares de pautas que a esquerda brasileira deveria integrar e, simplesmente, não integra”. “Por exemplo, a ideia de um Estado paritário, em que todas as instâncias decisórias do poder fossem organizadas de modo paritário. E também a ideia de um Estado plurinacional, partindo do princípio de que povos originários precedem a instalação do Estado-nação e, portanto, têm prerrogativa”, enumera.

Safatle também cita a necessidade da “decomposição do Estado necropolítico brasileiro”, com uma revisão de “toda a estrutura militar”, redução de jornada de trabalho e maior participação popular nas decisões, entre outros pontos.

Bandarra concorda que seria preciso, aos partidos de esquerda, incorporar pautas novas. “[Esses grupos] ainda são muito vinculados a ideias antigas de desenvolvimentismo, que passam pela questão do petróleo [como fonte energética] e pela pauta sindical. São questões importantes, mas que estão se modificando muito com a Quarta Revolução Industrial”, contextualiza ele, enfatizando que as lideranças de esquerda em geral são “envelhecidas, adeptas dessas pautas antigas”.

Ele lembra que o momento atual é de discussão de temas como transição energética, biodiversidade e sustentabilidade. Não é à toa que os partidos verdes têm crescido na Europa. “Há a questão do ecossocialismo, que pode juntar ideias tradicionais de esquerda com princípios ecológicos”, comenta Bandarra.

“A verdade é que a esquerda brasileira morreu já há um tempo. O lulismo também. O que não significa que o Lula não possa ganhar eleições, mas sim que não tem mais força de mobilização, de perspectiva de futuro”, sentencia Safatle. “O máximo [que diz Lula] é que o passado foi melhor que o presente. O que não deixa de ser verdade, mas politicamente é algo catastrófico.”

Safatle vê, no atual cenário, a candidatura de Lula como algo “sem nenhuma condição de se afirmar enquanto de esquerda”, mas sim uma “candidatura de oposição contra o governo”. “A esquerda não aparece com seu programa nessa eleição. O horizonte é de paralisia. É impossível imaginar que alguma coisa possa ocorrer dentro de uma frente tão ampla como a que está sendo organizada”, diz.

Resiliência de ambos os lados

O filósofo avalia que os partidos de esquerda não conseguiram responder à altura ao governo Bolsonaro. “Depois de tudo o que aconteceu, um governo que não conseguiu entregar nenhuma melhoria econômica para as largas parcelas da população, foi uma defesa de interesses da elite rentista brasileira e do seu sistema financeiro e que, negligenciando a pandemia, fez com que o Brasil contabilizasse mais de 600 mil mortes… Um governo com esse passivo ainda é capaz de garantir [quase] 30% dos votos [na mais recente pesquisa Datafolha, de março, Lula apareceu com 43% e Bolsonaro, com 26% ]”, aponta.

“Isso demonstra uma resiliência muito forte do Bolsonaro, com um eleitorado bastante fiel e mobilizado. Isso mostra que a esquerda brasileira vive uma posição problemática”, considera.

Autores do recém-lançado A Política no Banco dos Réus: A Operação Lava Jato e a Erosão da Democracia no Brasil, os cientistas políticos Fábio Kerche e Marjorie Marona têm uma outra interpretação. Ambos veem a esquerda brasileira em um bom momento, graças a uma capacidade de sobrevivência demonstrada na última década.

“Quando a gente olha para as eleições locais [municipais] de 2016, já vemos que, de modo geral, os partidos tradicionais perderam, tanto os da direita quanto os da esquerda. A novidade ali era o discurso de antipolítica [partidária], que afeta tanto a esquerda quanto a direita tradicional”, avalia Marona, que é professora na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). “Esse discurso vitorioso em 2016, um efeito direto da Operação Lava Jato e a implosão do sistema político, acaba antecipando as eleições de 2018.”

Por outro lado, ela acredita que, ao longo do governo Bolsonaro, “o PT, o principal partido de esquerda, mostrou muita resiliência”. “É surpreendente a capacidade do PT de se manter no jogo. O [candidato petista em 2008 Fernando] Haddad chegou ao segundo turno em 2018”, ressalta ela. “E o Lula está liderando as pesquisas agora para as próximas eleições.”

Sinais de recuperação

Professor na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio), Kerche pontua que, em 2018, além de chegar ao segundo turno com Fernando Haddad, o PT foi o partido que fez a maior bancada da Câmara dos Deputados — foram 56 deputados eleitos; em segundo lugar ficou o PSL, que então era o partido de Bolsonaro, com 52 cadeiras.

“Então essa presença [no cenário político] se manteve. Foram MDB e PSDB [os partidos] que mais perderam, deixando de figurar entre as principais bancadas”, comenta.

Na análise dele, o maior derrotado dos últimos anos foi a “direita demorada”, que acabou dando lugar para a extrema direita. “A esquerda, e aqui estou pensando na esquerda de modo a pensar no PT, embora tenha perdido e sofrido muito, conseguiu ficar com a cabeça fora d'água, conseguiu respirar e está dando sinais de que vai se recuperar fortemente”, diz ele.

Ele lembra que as pesquisas mostram não apenas Lula na liderança como também candidatos de partidos alinhados à esquerda bem colocados nas disputas estaduais. E acredita em um crescimento do espectro na bancada no Legislativo, graças a nomes “puxadores de voto”, como o candidato Guilherme Boulos (Psol), que vem costurando aliança com o PT.

Mais de três décadas após a redemocratização, Bandarra destaca que o PT ainda é o partido que sintetiza a esquerda brasileira por ter chegado mais longe e também por acabar congregando “uma série de partidos que gravitam em torno dele”.

“Podemos falar do PC do B e de outros partidos [que costumam coligar com o PT], atualmente também do PV. E também dos partidos que de certa forma ‘saíram' do PT, como o Psol e a Rede, que não gravitam em torno do PT, mas que estão ‘do mesmo lado'. E o PSB, que agora está crescendo [com a indicação de um quadro seu, o ex-tucano Geraldo Alckmin, para compor a chapa com Lula]”, avalia.