Os jornalistas que já ultrapassaram a faixa dos 50 anos tiveram a sorte de conviver no Congresso Nacional com Marcito. Sempre muito simpático e afável, o jornalista Márcio Moreira Alves percorria os corredores da Câmara e do Senado com a mesma simplicidade na disputa pelas informações. Como se não fosse ele parte importante da história brasileira.

Em 1968, Márcio Moreira Alves experimentava um período do outro lado do balcão em que exerceu a atividade parlamentar. Tinha sido eleito deputado federal pelo MDB, na primeira legislatura após a introdução do bipartidarismo, no qual a ditadura militar permitia apenas um partido de oposição e um governista. Era uma oposição moderada. Ao ter apenas dois partidos, brincava-se que o Brasil tinha agora somente “o partido do sim e o partido do sim, senhor”. Márcio ocupava a trincheira oposicionista que o regime militar permitia. E ninguém poderia imaginar que justamente ele, o afável e simpático jornalista, viria a ser o estopim a detonar o início dos anos de chumbo, dos momentos mais terríveis da ditadura, após a decretação do Ato Institucional nº 5.

Na verdade, Márcio Moreira Alves passou para a história como um pretexto. Há muito a república de generais instituída sob o argumento de varrer do país a ameaça comunista tinha abandonado completamente qualquer desejo de fazer retornar ao país a democracia.

CHUMBO GROSSO Os militares aproveitaram o clima de beligerância para fechar o Congresso, impor a censura prévia, cassar mandatos, prender, matar e torturar opositores (Crédito:Tolga Tezcan)

A intenção de aprofundar-se no caminho da ditadura já havia sido tomada por aqueles governantes de farda. Se não fosse Marcito, algum outro deputado oposicionista daquele tempo ou alguma outra situação qualquer faria detonar o famigerado ato ditatorial que, nas palavras do então ministro do Trabalho Jarbas Passarinho, mandava “às favas todos os escrúpulos de consciência”.

Há 50 anos, no dia 2 de setembro de 1968, o então deputado Márcio Moreira Alves foi à tribuna proferir um discurso corajoso. Referia-se a dois episódios recentes: ao fechamento da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e à invasão da Universidade de Brasília (UnB) pela Polícia Militar do Distrito Federal, quando diversos estudantes foram espancados e feridos. “Quando o exército não será um valhacouto de torturadores?”, perguntava Márcio. O deputado, então, conclamava o povo a não participar dos festejos do Dia da Independência, que desde sempre tiveram seu ápice nos desfiles militares nas principais avenidas do país. Marcito aumentava a provocação, propondo um boicote “que pode passar também às moças, às namoradas, àquelas que dançam com os cadetes e frequentam os jovens oficiais”.

Os militares sentiram-se ofendidos. Cópias do discurso circulavam pelos quarteis, onde os soldados de todas as patentes diziam-se atacados em seus brios. O governo do general Costa e Silva, então presidente militar de plantão, ingressou no Supremo Tribunal Federal (STF) com um pedido de cassação do mandato de Márcio Moreira Alves pelo “uso abusivo do direito de livre manifestação e pensamento e injúria e difamação das Forças Armadas”.

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O pedido não fazia sentido, à luz da Constituição. A imunidade parlamentar garantia — como garante hoje — a inviolabilidade de opinião de deputados e senadores.

De forma coerente, a Câmara negou a licença para a cassação do mandato de Márcio Moreira Alves. O que desencadeou o início da fase mais escura da longa noite da ditadura. Desde o golpe em 1964, o governo vinha editando os Atos Institucionais, nos quais foram mais e mais retirando e diminuindo as liberdades individuais. O discurso de Marcito gerou o que ficou conhecido como Ato Institucional nº 5, elaborado no dia 13 de dezembro de 1968. Era tal, porém, o radicalismo do AI-5 em comparação com os anteriores, que na reunião em que se discutiu a sua adoção, Jarbas Passarinho, ao apoiá-lo, pôs de lado, como disse, seus escrúpulos de consciência. O Congresso e as Assembleias foram fechados por quase um ano. O presidente da República
e os governadores assumiram as funções legislativas. Uma nova Constituição foi redigida por apenas três militares.

Estabeleceu-se censura prévia aos jornais, músicas, filmes, peças de teatro, etc. Qualquer servidor público podia ser demitido por subversão. Qualquer cidadão podia ter seus direitos políticos retirados pelos mesmos motivos. E diversos políticos foram cassados. A começar, é claro, por Márcio Moreira Alves.

O AI-5 vigorou por quase dez anos, até 13 de outubro de 1978. O fim da sua vigência marca os princípios do processo de abertura política, que levou ao fim da ditadura com a eleição de Tancredo Neves em 1985. Cassado, Márcio Moreira Alves viveu no exílio até 1979, retornando ao país após a decretação da lei da anistia. Foi nos anos de 1980 que retornou a Brasília como jornalista e colunista, outra vez percorrendo os corredores do Congresso de onde foi expulso pelos militares. Morreu em 2009.
Neste 7 de setembro, às vésperas da eleição presidencial mais imprevisível e tensa da história brasileira desde a sua redemocratização, não há motivos para pregar o boicote aos festejos da Independência.

O Exército não é mais um “valhacouto de torturadores”. Mas a falta de memória de alguns brasileiros hoje leva
à perigosa pregação de uma “intervenção militar” para resolver os problemas do país. Felizmente, as Forças Armadas contemporâneas não parecem compartilhar desse desejo intervencionista. Buscam, sim, maior inserção no debate, mas de forma democrática. E não é por outro motivo a presença nas eleições de tantos candidatos originários das casernas. Inclusive, um que disputa a Presidência. Que os equívocos dos que são saudosistas de ditaduras — por ignorância ou má fé — não obriguem o surgimento de novos Marcitos. A história brasileira não merece se repetir. Nem como farsa ou —
o que seria bem pior — como tragédia.


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