Mesmo cercado por escândalos como o orçamento secreto e o superfaturamento na compra de vacinas contra a Covid-19, Jair Bolsonaro insistia em pregar que o governo havia entrado na reta final livre de casos de corrupção. Declarava que, apesar da identificação de irregularidades em órgãos do governo, as denúncias não tinham atingido o alto escalão da Esplanada. A prisão do ex-ministro da Educação, Milton Ribeiro, suspeito de liberar recursos a municípios indicados por pastores-lobistas em troca de propina, coloca uma pá de cal sobre a retórica e mina a pretensão do presidente de apresentar a gestão como imaculada. A três meses das eleições, enquanto patina nas pesquisas, o capitão terá de se desdobrar para explicar o caso, que, aliás, envolve seu próprio nome. Afinal, foi o próprio ex-ministro que jogou Bolsonaro na fogueira ao depor à PF no dia 31 de março, quando disse que atendia os pastores acusados de corrupção a pedido do mandatário.

LIGAÇÕES Em evento no MEC, Bolsonaro e Milton Ribeiro são fotografados ao lado dos pastores-lobistas Gilmar Santos e Arilton Moura (da esq. para a dir.) (Crédito:Catarina Chaves)

O episódio afunda a campanha de Bolsonaro em seu pior momento. O Palácio do Planalto está em alerta não apenas devido à prisão, mas também em razão dos possíveis desdobramentos. O receio não é desarrazoado. O escândalo do gabinete paralelo do MEC ganhou repercussão com a divulgação de um áudio em que Ribeiro afirma que recebia os pastores Gilmar Santos e Arilton Moura, também encarcerados na Operação Acesso Pago, e acolhia os pedidos deles quanto à divisão de recursos do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação por orientação do presidente. Depois, em depoimento à Polícia Federal, o ex-ministro confirmou a ordem de Bolsonaro para que os religiosos fossem atendidos, mas negou qualquer “tratamento privilegiado”. O QG do capitão teme que, se jogado à própria sorte, Ribeiro fale mais e implique Bolsonaro em novos depoimentos.

A campanha do presidente lamenta a demora dele para demitir Ribeiro — foram 10 dias entre a revelação do “balcão de negócios” do MEC e a exoneração. O receio é de que a postura seja vista como condescendente. Bolsonaro acreditava que rifar o aliado seria uma confissão da existência do esquema de corrupção e chegou a afagar o então ministro: “Coisa rara eu falar aqui, eu boto a minha cara no fogo pelo Milton”. Era tragédia anunciada — àquela altura, prefeitos já haviam relatado que os pastores que tinham canal direto com Ribeiro cobravam propinas em dinheiro, barras de ouro e até por meio da compra de bíblias para igrejas. A conta chegou três meses depois, no pior momento possível para Bolsonaro.

Com o aliado atrás das grades, Bolsonaro mudou o tom em nome da sobrevivência político-eleitoral. “Ele que responda pelos atos dele”, disparou. Tarde demais, segundo aliados, que vêem perdida a bandeira anticorrupção e falam até em jogar “água benta” no Planalto, diante de tantos reveses. “O timing é péssimo. Não bastasse isso, é de se lembrar que Milton foi nomeado em razão da sua proximidade com Michelle Bolsonaro e André Mendonça, sem contar que as declarações do presidente na época em defesa do ex-ministro serão muito exploradas. O papel de freira, de virgem acabou, né?”, comenta, sob reserva, um parlamentar da vice-liderança do governo na Câmara.

Diante dos holofotes, a estratégia no QG de Bolsonaro é, por mais inacreditável que soe, tratar a prisão de Ribeiro como mais um episódio isolado. É o que fez Flávio, filho 01 do presidente.“Enquanto Bolsonaro afasta o ministro, a PF faz a investigação isenta, independente e sem interferência. Em governos passados, como o de Dilma, tentavam promover Lula a ministro para que não fosse preso por corrupção”, afirmou. Ao pintar o presidente como bom moço, Flávio não menciona que ele costuma retaliar delegados que avançam sobre seus aliados — Franco Pezzani e Alexandre Saraiva, por exemplo, foram afastados de postos de chefia depois de investigarem Ricardo Salles, ex-ministro do Meio Ambiente.

A oposição não pestanejou em usar a munição. Líder do PT na Câmara, Reginaldo Lopes apresentou uma notícia-crime contra Bolsonaro no STF. Com a investida, espera colocá-lo no centro das investigações. A estratégia pode surtir efeito. No ano passado, foi a partir de uma representação de senadores que Rosa Weber autorizou a abertura de um inquérito para investigar Bolsonaro por prevaricação frente a denúncias de superfaturamento na compra da vacina Covaxin. A apuração fez o mandatário sangrar, mas acabou arquivada, a partir de um relatório em que a PF argumentou que ele não poderia ser responsabilizado porque a comunicação de crimes a órgãos de controle não está entre os deveres funcionais de um presidente.
Em paralelo, Randolfe Rodrigues, um dos coordenadores da campanha de Lula, voltou a colher assinaturas para a abertura de uma CPI do MEC — o número regimental necessário já foi atingido.

Se colocado de pé, o colegiado terá potencial catastrófico para Bolsonaro — basta relembrar a audiência da CPI da Covid. Ciente disso, o governo entrou em campo com a promessa da liberação de verbas no ano eleitoral a quem lhe for fiel. A prisão de Ribeiro, Gilmar e Arilton, além do ex-assessor do MEC Luciano de Freitas Musse e do ex-assessor da Prefeitura de Goiânia Helder Bartolomeu, ocorreu no âmbito de um inquérito autorizado pelo STF e enviado à primeira instância. O grupo, que está sob suspeita de corrupção, prevaricação, advocacia administrativa e tráfico de influência, acabou solto na última quinta-feira, 23, pelo desembargador Ney Bello, do Tribunal Regional Federal da 1ª Região.

O magistrado, próximo de Gilmar Mendes e preferido de Bolsonaro para uma vaga no STJ, avaliou que eles não representam risco e pontuou que, afastado do ministério, Ribeiro não teria como praticar atos ilícitos. “A antecipação da culpa, a punição prévia, a sensação socialmente difusa de Justiça, ou a narrativa política, não justificam a prisão de quem quer que seja, ainda que crimes graves tenham ocorrido, o que deve ser objeto de futura e rápida condenação – se provados –, jamais de prisão preventiva”, anotou.

Indícios de propina

A investigação que levou os cinco para a cadeia foi municiada por depoimentos e relatórios da CGU. Durante a apuração, identificou-se um depósito de R$ 50 mil na conta de Myriam Ribeiro, esposa do ex-ministro. A transferência foi realizada por um parente de Arilton. A tese da defesa é a de que o dinheiro, encarado pela PF como um indicativo de propina, refere-se ao pagamento de um carro vendido à filha do pastor em 21 de fevereiro. A justificativa lembra o argumento usado em 2018 por Bolsonaro na tentativa de explicar transferências de Fabrício Queiroz, pivô do esquema de rachadinhas, a Michelle Bolsonaro. À época, o presidente alegou que o ex-assessor estava pagando um empréstimo.

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Na esteira de provas materiais, estão, ainda, declarações de prefeitos. Entre eles, José Manoel, que comanda a cidade de Boa Esperança do Sul, em São Paulo. Há três meses, ele afirmou que, durante uma reunião em março de 2021, Arilton havia exigido R$ 40 mil em propina em troca da liberação de recursos do FNDE para a ampliação de duas unidades de ensino e a compra de ônibus escolares. À ISTOÉ, o prefeito contou que, após a recusa, a cidade não recebeu qualquer verba. “Com a demora na liberação de verba, o governo de SP custeou dois ônibus e a ampliação de uma das escolas para o município. O projeto da outra unidade de ensino está parado. Se o dinheiro do MEC não sair, faremos com recursos próprios”, disse.

Responsável pela ordem para as prisões, o juiz Renato Borelli, da 15ª Vara Federal do DF, recebeu “centenas” de ameaças de morte de “grupos de apoio do ex-ministro”, em uma investida característica à de milícias digitais, segundo informou o tribunal. A PF investiga o caso. Borelli não está entre os preferidos do Planalto. Partiu dele a decisão que, em 2020, reiterou a obrigatoriedade do uso da máscara de proteção facial a Bolsonaro e impôs multa diária de R$ 2 mil em caso de descumprimento. Além disso, o magistrado bloqueou bens do ex-prefeito do Rio Marcelo Crivella, aliado de primeira hora do Planalto, em 2018.

Peça central do balcão de negócios do MEC, o FNDE é comandado por Marcelo da Ponte, afilhado político de Ciro Nogueira, ministro da Casa Civil e manda-chuva do Centrão. Com um orçamento de R$ 64,7 bilhões previsto para este ano, o órgão é figurinha marcada em escândalos de corrupção — as suspeitas vão de superfaturamento em compras de mesas, cadeiras escolares, kits de robótica e ônibus à priorização de aliados do líder do Progressistas em liberações financeiras.

COMBATE À CORRUPÇÃO A PF deixa a sede do MEC na quarta-feira, 22, com documentos apreendidos na “Operação Acesso Pago” (Crédito:Pedro Ladeira)

Centrão no comando

Em audiência na Câmara, no mês passado, Ponte admitiu ter ouvido “conversas tortas” de assessores sobre a atuação dos pastores-lobistas e disse que repassou os relatos ao comando do MEC. Declarou, ainda, nunca tê-los recebido no FNDE. Se ele não atendeu os religiosos em conversas reservadas, o mesmo não pode ser dito a respeito de Ciro. O ministro conversou em privado com os religiosos em pelo menos duas oportunidades. Fotos dos encontros chegaram a ser publicadas nas redes dele e da Casa Civil, mas foram apagadas quando estourou o escândalo. Um relatório do GSI mostrou que Gilmar e Arilton visitaram o Planalto 35 vezes entre 2019 e 2021. Em nenhuma delas, segundo o órgão, passaram pelo gabinete de Bolsonaro. Há, no entanto, imagens dos três juntos em evento no MEC. Mais uma prova da linha direta dos lobistas com o centro do poder.

Seja qual for o desfecho do caso, a prisão de Ribeiro, ainda que por apenas um dia, além de cair como uma bomba na campanha do presidente, consolida o retrocesso da educação durante o governo Bolsonaro. Não bastasse impor um martírio ao setor com a priorização da baboseira ideológica no lugar da valorização de professores, da melhoria da infraestrutura de escolas e universidades e da busca por saídas para reverter os danos causados pelos dois anos em que alunos ficaram fora das salas de aula em razão da pandemia, a gestão imerge na corrupção. O calvário do Brasil parece não ter fim.