O poder político na Venezuela, a exemplo da economia, é um caos. O Poder Legislativo é disputado por duas casas conflitantes, que não reconhecem a legitimidade uma da outra. A Assembleia Nacional, de maioria opositora e eleita democraticamente em 2015, teve suas funções extirpadas pelo ditador Nicolás Maduro em 2017, quando ele convocou uma Assembleia Nacional Constituinte — totalmente submissa a seu governo e eleita de forma fraudulenta. Na quarta-feira 23, o país passou a ter também dois presidentes. O deputado Juan Guaidó, eleito líder da Assembleia Nacional (a legítima) no último dia 5 de janeiro, declarou vago o cargo ocupado por Maduro e nomeou a si próprio governante interino do país. Os Estados Unidos rapidamente o reconheceram como novo mandatário. O Canadá também. A diplomacia brasileira fez o mesmo. “O Brasil apoiará politica e economicamente o processo de transição para que a democracia e a paz social voltem à Venezuela”, informou nota divulgada pelo Itamaraty. Quase todos os países da América Latina reconheceram Guaidó como presidente legítimo da Venezuela, com exceção de México, Bolívia, Cuba e Uruguai. A União Europeia ainda não havia tomado uma posição até o fechamento desta edição. Dezenas de milhares de venezuelanos foram às ruas em apoio a Guaidó. O jogo finalmente parecia estar virando a favor da democracia e contra o regime chavista, depois de duas décadas de desmandos e de políticas que empobreceram a população.

É acertada a decisão do governo de Jair Bolsonaro de considerar legítima a reivindicação de Guaidó. Desde 10 de janeiro, quando terminou seu primeiro mandato presidencial, Nicolás Maduro ocupa ilegalmente o cargo, já que sua reeleição, em maio do ano passado, foi uma farsa — entre outros motivos porque os principais líderes de oposição estavam presos, porque não foi permitida a atuação de observadores internacionais independentes e porque a Justiça eleitoral não possui independência em relação ao Poder Executivo. Como presidente da única instituição do país que não se dobrou ao regime chavista, a Assembleia Nacional, Guaidó tinha a prerrogativa, assegurada pela constituição escrita pelo próprio Hugo Chávez, antecessor e mentor de Maduro, de declarar o cargo presidencial vago. Por lei, ele terá que convocar novas eleições em 30 dias, e não há motivos para acreditar que não o faça.

DE VOLTA ÀS RUAS Multidão protesta em Caracas contra Maduro: repressão violenta (Crédito:REUTERS/Adriana Loureiro)

Pupilo de López

Engenheiro de formação, Guaidó, de 35 anos, fez parte do movimento estudantil que, em 2007, protestou contra um referendo

ACUADO MADURO discursa no Palácio Miraflores: ele chamou Guaidó de “fascista” e recusou-se a deixar o poder (Crédito:LUIS ROBAYO)

que pretendia ampliar os poderes de Chávez. Despontou para a política como pupilo de Leopoldo López, o carismático líder opositor que foi detido arbitrariamente em 2014 e submetido a maus-tratos nas masmorras chavistas. Atualmente, López está em prisão domiciliar. Seu calvário começou porque ousou levantar-se contra o chavista. Guaidó demonstra a mesma coragem e, por isso mesmo, corre os mesmos riscos: há duas semanas, depois de declarar que daria anistia a militares que ajudassem a depor Maduro, ele chegou a ser detido por algumas horas pela polícia política, a Sebin. É dado como certo que, se conseguir convocar novas eleições, Guaidó pretende colocar-se de lado para que López possa se candidatar à presidência — com grandes chances de vencer.

Há tempos a situação na Venezuela exigia uma resposta mais contundente da comunidade internacional. A conjuntura atual, com governos de direita e declaradamente anti-chavistas nos Estados Unidos, na Colômbia e no Brasil, permitiu que isso acontecesse. Mas o isolamento internacional pode não ser o suficiente para persuadir Maduro a deixar o cargo. A razão é que o seu governo não é apenas ilegítimo. É também criminoso. A Venezuela é, hoje, um narcoestado. Ou seja, suas instituições são usadas para acobertar os vínculos do governo com o tráfico internacional de drogas. Esse fato já foi comprovado em diversas investigações corroboradas por ex-dirigentes chavistas que estão exilados nos Estados Unidos. Em 2015, dois sobrinhos de Maduro foram presos no Haiti com 800 quilos de cocaína destinados a um cartel mexicano. Na quarta-feira 23, quando fez um discurso em resposta ao desafio de Guaidó, Maduro tinha a seu lado, na varanda do Palácio Miraflores, Diosdado Cabello, o segundo homem mais poderoso da Venezuela. Cabello está na lista de sanções americanas por lavagem de dinheiro e narcotráfico. Pedir que Maduro e Cabello deixem o poder, portanto, seria o mesmo que pedir para alguém como Pablo Escobar que desista do crime. A estratégia deles é aferrar-se ao poder e reprimir as manifestações populares, como de fato já vem ocorrendo. Em três dias de protestos, 16 pessoas já morreram na Venezuela. Enquanto Maduro tiver o apoio das Forças Armadas, a Venezuela continuará tendo dois presidentes. Um reconhecido pela população e por governos estrangeiros, o outro com todo o aparato estatal e repressivo nas mãos.