25/09/2016 - 8:36
Destruído, não se sabe o motivo, anos atrás, o ovo de cimento com cacos de vidro criado em 1982 por Ivens Machado foi cuidadosamente reconstruído para, agora, receber os visitantes da exposição O Cru do Mundo, conciso panorama da obra do artista, morto em 2015, aos 72 anos, depois de cair de uma escada em sua casa, no Rio.
No Pivô, a peça, sustentada por quatro pesados pés de concreto e ferro, é rudeza e delicadeza e remete a um dos trabalhos mais referenciais da trajetória do escultor, o Mapa Mundo (1979), que, no formato do Brasil, representa o País de uma maneira violenta e até sedutora com os pedaços de vidro verde espetados cobrindo o cimento como uma forragem, uma mata leve.
Ivens Machado (1942-2015) incorporou desde muito tempo os materiais da construção civil popular em sua obra, mas mesmo quando o artista faz um comentário social em suas criações, diz a curadora da mostra, Kiki Mazzucchelli, há uma referência intensa, “escancarada”, à sexualidade, às formas orgânicas.
“Ele tem uma esquisitice própria”, afirma ainda Kiki Mazzucchelli, destacando que o escultor de “personalidade difícil”, avesso e resistente ao jogo da autopromoção necessário no mercado e no circuito da arte, é um dos grandes de sua geração – tal como Cildo Meireles (1948) e Tunga (1952-2016), resolveu não incorporar o legado do neoconcretismo e criar uma linguagem muito própria.
Entretanto, a raiz da produção de Ivens Machado está relacionada com a “afronta às normas e aos costumes”, define a curadora de O Cru do Mundo, primeira individual institucional do artista em São Paulo desde a retrospectiva que ele exibiu, em 2002, na Pinacoteca do Estado.
O painel de azulejos brancos com pacotes enfaixados e pendurados – e até um ralo, o mais antigo da atual exposição no Pivô, datado de 1973, remete ao ano em que o escultor se tornou conhecido ao apresentar a instalação Cerimônia em Três Tempos, no Museu de Arte Moderna do Rio, além de participar da 12.ª Bienal de São Paulo.
Mais ainda, assim como os desenhos de 1974 e de 1976, pertencente à série dos anos 1970 e 80 na qual Ivens Machado subverteu, sutilmente, as pautas de cadernos escolares, o trabalho histórico de 1973 trata de “desorganização”, da criação de um “ruído”, explica Kiki Mazzucchelli, uma vez que o artista incorpora estranhos elementos na composição geométrica de azulejos, material relacionado à higiene – e a curadora vê de algum modo a ressonância dessa peça do escultor na visceralidade da obra da pintora Adriana Varejão. “Há um reconhecimento de Ivens Machado entre os artistas”, comenta.
A mostra também traz dois vídeos históricos, Versus (1974) e Escravizador / Escravo (1974), que ressaltam a questão da sexualidade na produção do escultor e videoartista pioneiro.
Principalmente, no segundo trabalho, a violência da ação de Ivens Machado na narrativa de tortura pode ser vista como a mesma dos vergalhões aparentes de suas esculturas; do uso do cimento cru – ou, algumas vezes, pintado com pigmentos; e dos eucaliptos transformados em lanças na obra Positivo Negativo (2007). “Uma das minhas buscas é o primitivo”, afirmou o artista, em 2002, ao jornal O Estado de S. Paulo.
O Cru do Mundo, com peças dos acervos dos colecionadores Gilberto Chateaubriand e João Sattamini, respectivamente, cedidos ao MAM-RJ e ao MAC-Niterói, e de coleções particulares, pontua a trajetória do artista década a década, até 2010.
Espólio
Nascido em Florianópolis, Ivens Machado mudou-se em 1964 para o Rio, onde teve como interlocutores Anna Bella Geiger, Fernando Cocchiarale e Paulo Herkenhoff, menciona a curadora, e onde trabalhou e viveu. Apesar de recluso nos últimos anos e do atual resgate de sua obra, o artista, reconhecido desde a década de 1970, participou de exposições no Brasil e no mundo (na Itália, particularmente, suas criações tiveram especial repercussão nos anos 1980).
A Galeria Fortes Vilaça vinha negociando com o escultor a representação de seu trabalho artístico. Atualmente, devido à morte de Machado, o espólio do artista, por decisão de sua família, está sob responsabilidade de Monica Grandchamp, sua amiga por “quase 30 anos”. “Construí várias obras com ele”, conta a designer gráfica, citando, por exemplo, a realização da “trança”, peça de cerca de 10 metros de comprimento formada por compartimentos de telas de nylon que abrigam pedras portuguesas de cores diferentes em seu interior – e restaurada para a mostra no Pivô.
Com apoio de prêmio da Funarte, Monica Grandchamp vai mapear a obra de Ivens Machado. “Nunca pensei que fosse precisar tanto da minha memória”, ela diz. Por ora, os trabalhos do artista, muitos de grandes dimensões, estão divididos entre um galpão “guarda-móveis” no Rio e a Fortes Vilaça.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.