A posse de Joe Biden no dia 20 foi atípica e histórica em vários sentidos. Numa Washington ocupada militarmente para evitar a repetição das cenas de vandalismo protagonizadas por apoiadores de Donald Trump duas semanas antes, o novo presidente americano fez o juramento de cumprir a Constituição em meio a ex-presidentes e líderes democratas e republicanos e diante dos olhares do mundo todo. Também estava presente Mike Pence, vice de Trump, o que compensou a ausência do perdedor da eleição — foi a primeira vez em mais de 150 anos que um mandatário se recusou a passar o cargo ao sucessor eleito. Por causa da pandemia e das restrições de segurança, a participação popular foi menor do que a usual. Mas a cerimônia não foi menos importante ou comovente por causa disso.

O 46º presidente americano fez um discurso emotivo em que enfatizou a unidade e a reconciliação. A mensagem contra o racismo deu a tônica, ao lado da defesa da democracia. Com isso, encerrou simbolicamente um dos períodos mais polarizados da história americana, marcado pela gestão errática e repleta de ódio de Donald Trump. Ela não causou apenas problemas domésticos. Diminuiu o poder e a influência do país. “Vamos liderar não só pelo exemplo da força, mas pela força do exemplo”, disse Biden. O pronunciamento conciliatório responde a um dos principais desafios do novo líder: diminuir o clima de guerra criado pelo ex-presidente, que conseguiu estimular movimentos supremacistas brancos. “O país precisa de uma pacificação doméstica. Essa foi a tônica do discurso”, concorda o professor de Relações Internacionais da Faap Carlos Augusto Poggio. A posse em meio ao clima de conflagração interna só teve paralelo na história da nação com a reeleição de Abraham Lincoln, em plena guerra civil, que acabou com a escravidão.

Além de enfrentar o ambiente extremista, Biden também inicia sua gestão em meio à maior crise de saúde em mais de um século, no momento em que os EUA ultrapassaram a marca de 400 mil mortos. Por isso, vai reverter imediatamente as ações desastradas do antecessor, que agravou a doença pelo discurso negacionista. O retorno do país à Organização Mundial da Saúde foi uma das primeiras medidas anunciadas pelo novo presidente, que também deseja acelerar a vacinação. Já na economia as suas ações devem trazer alívio, mas também dúvidas. A opção por maiores estímulos vai prevalecer, e perde força a redução de impostos. Com a maioria democrata tanto na Câmara como no Senado, Biden terá facilidade em aprovar seu plano trilionário de ajuda a famílias e pequenas empresas. Mas voltar a impulsionar a economia com déficits profundos e o mercado saturado de dinheiro barato, causado pelas taxas de juros baixas, aumenta o risco de futura instabilidade financeira. Diante dessa circunstância decisiva de grandes escolhas econômicas, a posse também lembra outro momento histórico, quando Franklin Roosevelt assumiu nos anos 1930 prometendo restaurar o país devastado pela Depressão. É uma enorme tarefa que pesa sobre Biden: reviver o New Deal. Economistas já se preocupam com os efeitos nocivos dos estímulos gigantescos no momento em que as restrições da pandemia forem superados.

INÉDITO Por causa da pandemia, bandeiras ocuparam o lugar dos populares no National Mall, diante do Capitólio. Lady Gaga, que conhecia Biden, cantou o hino nacional (Crédito:Allison Shelley/)

Na posse, também brilhou Kamala Harris, a primeira mulher e negra a assumir a vice-presidência. Ela confirma a bem-sucedida aposta na diversidade feita por Biden, que se preocupou em nomear para seu governo negros, filhos de imigrantes, gays e transgêneros. Essa não é apenas a reafirmação de seus antigos compromissos com a causa dos direitos civis e da igualdade. Também é uma tentativa de alinhar a administração com a nova demografia no país, que ficou estampada de maneira exemplar na Geórgia. A eleição no estado quebrou várias barreiras. Pela primeira vez um negro foi eleito senador. A vitória foi resultado da luta pela participação inédita de negros no pleito, o que garantiu a maioria democrata no Senado e a própria consagração do novo presidente.

Valorização dos aliados

Biden se preocupa em virar rapidamente a página da conturbada era Trump. Anunciou que vai suspender a construção do muro na fronteira com o México, superando o movimento anti-imigrantes. Mas a novidade mais importante tem a ver com o meio ambiente. Biden anunciou que vai reinserir o país no Acordo de Paris. “Ele vai buscar se reconectar com os aliados europeus. Esse foi o principal dano que Trump causou à política externa, pois é o pilar da ordem internacional depois da Segunda Guerra. O Acordo de Paris tem a ver com isso”, diz Poggio. Também tem a ver com uma visão estratégica econômica da era Obama que Biden vai reativar: a economia verde. O democrata quer diminuir o uso de combustível fóssil e impulsionar novas tecnologias, o contrário do que Trump praticou.

No âmbito internacional, Vladimir Putin perderá um grande aliado em Washington. Trump se negou a investigar a interferência russa nas eleições de 2018 e minimizou até o recente ataque de hackers russos a órgãos do governo americano, uma ação em escala nunca vista. Biden, ao contrário, já declarou que a Rússia é a maior ameaça externa. Mas não deve alterar radicalmente a disputa com a China. O novo presidente é um negociador experiente e previsível. Vai abandonar as políticas disfuncionais do seu antecessor, deixando de lado a retórica belicista e a adulação de ditadores. Vai praticar mais cooperação e tolerância. Porém, manterá a pressão contra os chineses pela supremacia econômica e tecnológica. Fará isso não pela imposição intempestiva de barreiras comerciais, mas por meio de ação coordenada com aliados. É um alerta para o agronegócio brasileiro, que bateu recordes nos últimos anos com o impulso das exportações aos chineses. Isso ocorreu em parte como resultado da guerra comercial de Trump contra o gigante asiático, que prejudicou os agricultores americanos. Oportunidades como essa podem diminuir.

“A democracia prevaleceu. Poucos na história enfrentaram um momento mais desafiador e difícil do que vivemos hoje”
Joe Biden, presidente dos EUA

A defesa enfática da democracia, da civilidade na política, da cooperação multilateral e do meio ambiente por parte do novo presidente é uma ótima sinalização para o mundo, mas é uma péssima notícia para Bolsonaro. É o contrário do que pratica, e por isso deve ficar no fim da fila dos parceiros internacionais, isolando-se ainda mais. Bolsonaro e seu antichanceler, Ernesto Araújo, defenderam o ex-presidente Trump até em suas acusações infundadas de fraude nas eleições. Agora, será difícil reverter a péssima imagem com o democrata. Biden derrotou um adversário que é o líder do populismo e na política contemporânea, nota Miriam Saraiva, professora de Relações Internacionais da UERJ. Para ela, se Bolsonaro quiser se aproximar do novo presidente precisará mudar suas políticas no Brasil, mas não pode fazer isso. “Não adianta chegar com um sorriso e achar que é suficiente. Se Bolsonaro mudar sua política ambiental e de direitos humanos, tirando a Damares Alves, não será mais o Bolsonaro. E com isso perderia o suporte dos apoiadores que o elegeram em 2018 e o sustentam no poder. Por isso, não pode mudar.” Como Bolsonaro visou os benefícios pessoais ao aderir a Trump, e não os interesses do País, pode-se esperar que o Brasil continue a perder protagonismo na era Biden, com menos acento nos órgãos internacionais.

PRESENÇA FEMININA Kamala Harris é a primeira vice-presidente mulher e negra do país. Melania Trump deixou a Casa Branca com impopularidade recorde, assim como o marido Donald (Crédito:BRENDAN SMIALOWSKI/ALEX EDELMAN)

Já Trump sai de cena de forma melancólica, com baixa histórica em sua aprovação. O ataque bárbaro ao Congresso custou o apoio de republicanos e de setores moderados e ainda levou ao segundo processo de impeachment que enfrenta no Senado — e que pode tirá-lo de novas eleições. Foi banido das redes sociais, que foram seu principal instrumento de mobilização e comunicação. E enfrentará múltiplos processos na Justiça, além de problemas econômicos com suas empresas. A “marca” Trump perdeu valor. O trumpismo ainda resiste e atrai radicais, além de camadas ressentidas com a decadência econômica e a desindustrialização. Mas o ex-presidente terá dificuldades com o establishment político que sempre rejeitou. Daí a opção que já começa a circular da formação de um novo partido político e até de uma nova rede de comunicação conservadora. Um de seus últimos atos foi perdoar e relaxar as penas de 143 aliados e personalidades, inclusive de seu ex-estrategista político, Steve Bannon, condenado por desvio de fundos. A era Biden mostra que ano de 2021 será marcado por uma inflexão global. Que o maior líder populista seja expelido da política como pária e deixe como legado o alívio de criminosos indica que os novos tempos são promissores e já começaram.

Colaborou Guilherme Henrique