PEIXE GRANDE Motorista e ex-assessor de Flávio Bolsonaro, Fabrício Queiroz era amigo de pescaria do presidente eleito (Crédito:Divulgação)

Existe um princípio na história chamado “Teoria dos Ciclos Históricos”. Segundo o axioma, o progresso social desenvolve-se de acordo com grandes ciclos que se repetem ao longo do tempo. Essa máxima é defendida por pensadores da Grécia Antiga, como Heródoto e Tucídides. Durante a campanha, o processo eleitoral foi considerado uma espécie de déjà vu das eleições de 1989 pelo número incontável de candidatos e o anseio de renovação da política. Em 1989, triunfou Fernando Collor de Mello. Agora, quem é alçado ao Olimpo político é Jair Bolsonaro, aquele que promete “mudar tudo isso daí” e livrar o País das velhas práticas políticas e corruptas institucionalizadas pelo PT. Antes mesmo da posse do presidente eleito, no entanto, um novo personagem parece repetir a história vivida por Fernando Collor. Em 1992, as páginas de ISTOÉ apresentaram ao Brasil certo motorista de confiança e uma espécie de faz tudo do então presidente e de sua família. Tratava-se de Eriberto França, que denunciou à época que o ex-tesoureiro da campanha de Collor Paulo César Farias bancava as despesas da família do presidente. A primeira evidência da história revelada por Eriberto foi justamente o aparecimento de um cheque para sua então mulher, Rosane Collor. Mais tarde, apareceram um automóvel, um Fiat Elba, e a reforma dos jardins da Casa da Dinda, residência da família Collor.

Vinte e seis anos depois, um motorista volta a balançar a vacilante República. E também com ele um depósito em nome da mulher de Bolsonaro, Michelle. Desta vez não é alguém que tenha trabalhado diretamente com o presidente eleito. Fabrício José Carlos de Queiroz era motorista e assessor do filho de Bolsonaro, Flávio. Em contrapartida, sua amizade e intimidade com Bolsonaro e sua família parece muito mais estreita. Ele não era apenas um funcionário, como Eriberto. Foi colega de tropa do presidente eleito no Exército e seu amigo íntimo, parceiro de churrascos e pescarias. Por razões que ainda precisam ser investigadas e esclarecidas, Queiroz emprestou sua conta bancária para o trânsito de altas somas de dinheiro depositadas por outros funcionários do gabinete de Flávio Bolsonaro. Parte desses recursos foi parar nas contas da mulher do futuro presidente.

Quem conheceu Queiroz recorda-se de uma pessoa simpática e loquaz, que contava e ria das piadas contadas por Bolsonaro. Desde que se tornou público o relatório do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) que detalha a entrada e saída de dinheiro da sua conta, Queiroz refugiou-se no silêncio. Submergiu. Não à toa. Os relatórios do Coaf são incontestáveis. Apontam que Fabrício efetuou movimentações atípicas da ordem de R$ 1,2 milhão durante o ano de 2016, um valor muito superior ao que recebia de proventos – R$ 8.517 mil no gabinete e R$ 23 mil no total, incluindo o salário como PM. As transações aconteciam imediatamente após os pagamentos de salários na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro. Por meio de sua conta, Queiroz recebia o repasse de outros funcionários. E sacava depois. As operações observavam um padrão. Entravam e saíam da conta num intervalo pequeno de tempo. Muitas vezes no mesmo dia. De acordo com o Coaf, só em 2016 o motorista efetuou ao menos 176 saques, 50 dos quais em quantias superiores a R$ 2 mil.

Andre Melo/Futura Press/Folhapress; Antonio Milena

CAIXINHA PARLAMENTAR

O relatório anexado aos autos da Operação Furna da Onça, que resultou na prisão de dez deputados estaduais do Rio de Janeiro. O material foi produzido a pedido do Ministério Público Federal (MPF), que passou a investigar todas as comunicações de movimentações atípicas de pessoas nomeadas na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj). Flávio Bolsonaro não foi e ainda não é investigado sob suspeição de fatos ilícitos. Mas as movimentações de Queiroz realmente chamaram a atenção. Fontes ligadas ao MPF disseram a ISTOÉ que podem ser suficientes para fazer Flávio Bolsonaro vir a integrar o rol dos investigados. Queiroz deve prestar depoimento esta semana ao órgão para dar explicações. Afinal, segundo o que descreveu o Coaf, como um homem com vencimentos da ordem de R$ 23 mil poderia movimentar R$ 1,2 milhão em suas contas (algo em torno de R$ 100 mil ao mês)?

Segundo apurou ISTOÉ, a decisão de Queiroz de se isolar guarda relação com o seu visível abatimento. Tem se queixado da imprensa e não voltou a falar com Jair Bolsonaro, desde a eclosão do escândalo. Foi justamente Bolsonaro que o levou para trabalhar com o filho, Flávio, em 2007. Na quarta-feira 12, o presidente eleito usou as redes sociais para comentar a investigação contra Queiroz. Bolsonaro disse que “dói no coração” ver o amigo envolvido no caso. “Se tiver algo errado, que paguemos aí a conta deste erro”, afirmou o presidente eleito. Apesar de reconhecer publicamente a hipótese de haver algo de estranho no reino dos Bolsonaro, para quem se elegeu prometendo acabar com as práticas nefastas e corruptas de 14 anos de PT no poder, ainda é pouco o que o futuro mandatário do País declarou diante das câmeras.

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“Dói no coração. Se tiver algo errado, que seja comigo, com
meu filho, com Queiroz, que paguemos aí a conta deste erro”

Jair Bolsonaro, sobre o caso do motorista

Em caráter reservado, integrantes do Ministério Público do Rio de Janeiro dizem considerar que, no mínimo, se estaria diante de um caso típico de “caixinha parlamentar” ou “mensalinho”, no qual servidores devolvem parte do que ganham ao político que os emprega. Queiroz funcionaria como uma espécie de arrecadador. E sua conta-corrente seria uma espécie de “conta de passagem”. A dúvida é: para onde ia o dinheiro? Um caixa paralelo destinado a abastecer campanhas? Pagar contas pessoais? E Bolsonaro tinha conhecimento das operações? Tal qual o ex-presidente Collor em 1992, existe sim uma suspeita, ainda que incipiente, de que essa movimentação atípica do motorista possa ter beneficiado diretamente Bolsonaro e seus filhos. Integrantes da promotoria não descartam a possibilidade de a história ir parar no STF a partir do ano que vem, já que envolve pessoas com foro privilegiado. Para o MP, respostas mais consistentes só serão obtidas após a quebra de sigilo bancário e fiscal de Queiroz. A partir dali é que os integrantes do MP podem apurar o destino do dinheiro.

No caso de Eriberto, a primeira evidência foi um cheque para Rosane Collor. Agora, há um cheque compensado para Michelle Bolsonaro de R$ 24 mil, que saiu das contas de Queiroz. Bolsonaro alega que é fruto de um empréstimo concedido ao ex-assessor. Argumenta ainda que o valor total do empréstimo seria de R$ 40 mil, devolvido em dez cheques de R$ 4 mil. “Eu podia ter botado na minha conta. Foi para a conta da minha esposa, porque eu não tenho tempo de sair. Essa é a história, nada além disso. Não quero esconder nada, não é nossa intenção”, afirmou o presidente eleito.

Queiroz, tal qual Eriberto, é um cidadão simples. Um brasileiro. Nascido em outubro de 1965, ele mora em um sobrado na região da Taquara, em Jacarepaguá, Zona Oeste do Rio de Janeiro. Sua casa é simples até para o padrão de quem recebe R$ 8,5 mil de vencimentos mensais. O sobrado em uma viela da Taquara, de casas geminadas, sequer possui tinta na parede externa na sua parte superior. A janela não tem esquadria nem vidro. Aparentemente, o imóvel está em reforma. Na mesma região de Jacarepaguá, há mansões que custam menos que o valor de R$ 1,2 milhão que Queiroz movimentou em sua conta.

“A construção de uma nação mais justa
requer a ruptura com práticas que retardam nosso progresso: a corrupção, a violência, as mentiras e a manipulação ideológica” Jair Bolsonaro, na cerimônia de diplomação na segunda-feira 10 (Crédito:Divulgação)

COMO TUDO COMEÇOU

Queiroz conheceu Jair Bolsonaro em 1984, na Brigada Paraquedista, quando foi prestar serviço militar obrigatório, aos 18 anos. Na época, ele conheceu também o hoje vice-presidente eleito Hamilton Mourão. Mas se tornou amigo mesmo de Bolsonaro, que já era oficial. Foi Bolsonaro quem incentivou Queiroz a ingressar mais tarde na Polícia Militar. A amizade transformou-se em simpatia política. Quando Bolsonaro entrou para a política, Queiroz aproximou-se da sua luta em favor dos interesses dos militares, principalmente de baixa patente. O motorista dizia invejar que os soldados do Exército tivessem um representante como Bolsonaro. E os PMs, como ele, não. A amizade floresceu. Tanto que Queiroz era figura constante nos churrascos da família e nas pescarias de Bolsonaro no litoral do Rio. A relação se intensificou a partir de 2006, quando o ex-assessor colaborou, de forma espontânea, com a campanha de Flávio para deputado estadual. Daí também nasceu a amizade com o filho, para o qual passou a trabalhar a partir de abril de 2007. ISTOÉ apurou que o próprio Queiroz se queixava das atividades na Polícia Militar na época e queria fazer “algo novo”. Foi quando surgiu a função que ele passou a exercer, até outubro deste ano, no gabinete de Flávio.

No staff do deputado estadual, Queiroz era uma espécie de faz tudo: motorista, segurança e office boy. Ele também ajudava a organizar a agenda do deputado estadual, carregava caixas, documentos e pastas. Sempre foi considerado um homem de extrema confiança. No gabinete, tornou-se amigo também do tenente-coronel da PM Wellington Servulo Romano da Silva, cujo nome aparece igualmente no Coaf, e que passou 248 dias em Portugal enquanto trabalhou com os Bolsonaro na Alerj. Mas era mesmo Flávio o seu confidente. Durante os traslados no Rio de Janeiro, Flávio Bolsonaro e Fabrício Queiroz tinham suas conversas regadas por várias histórias do tempo em que era policial militar. Queiroz também era uma ponte importante de Flávio com os PMs, que passaram a fazer parte de sua base de apoio. Vários deles chegaram a procurar o motorista como interlocutor para tentar articular pautas em favor da categoria. O contato com Bolsonaro ocorria mais aos finais de semana, já que Queiroz era um contumaz frequentador da casa do presidente eleito na Barra da Tijuca, no Rio, próxima à região da Taquara, onde mora o motorista. Em várias oportunidades, foi Queiroz o responsável por comprar a carne e a cerveja para as confraternizações.

Queiroz conheceu Bolsonaro em 1984 na Brigada Paraquedista e se tornou
uma espécie de faz-tudo: motorista, segurança e office boy do gabinete de Flávio

Em 1992, o então motorista de Collor, Eriberto, fez revelações que ajudaram a aprofundar as investigações. Queiroz ainda precisa se pronunciar. E explicar o que de fato significa a movimentação de dinheiro nas suas contas. Espera-se ansiosamente pelas explicações. Que os deuses da história não preguem outra peça no Brasil.


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