Não fosse a prisão do prefeito Marcelo Crivella hoje bem cedo, a declaração de Jair Bolsonaro teria chamado mais atenção. O presidente comentava a decisão de Kassio Marques, o ministro que indicou ao STF, suspendendo liminarmente a vigência de um trecho da Lei da Ficha Limpa – aquele que estabelece que o prazo de oito anos de ilegibilidade para políticos condenados criminalmente em segunda instância só começa a ser contado depois do cumprimento da pena.

Disse Bolsonaro: “O pessoal fica na maldade: ‘Ah, destruiu a Lei da Ficha Limpa’. Primeira coisa, quem está reclamando muito tem que ter coragem, já que ele é ficha limpa, um cara bacana, se candidata para ver como é que a vida de um político, para ver.”

Essa foi a confissão mais explícita já feita por Bolsonaro de que toda aquela conversa de campanha sobre corrupção e renovação da política era da boca para fora – porque da porta do gabinete para dentro, a coisa é bem diferente.

Atenção: Bolsonaro não está defendendo a atividade política de maneira genérica. Não está dizendo que a rejeição que ele ajudou a inocular na população contra todos os que exercem cargos públicos deve ser repensada. Se fosse isso, eu estaria aplaudindo.

Não. O contexto da fala é bem específico. Bolsonaro está defendendo condições mais brandas de punição para políticos que foram pegos com a mão na massa e considerados culpados em duas instâncias do Judiciário. É sobre esses criminosos que ele está dizendo: vida de político é uma coisa dura, coitados de nós!

Se bem entendi a referência à coragem (ou, inversamente, à covardia de quem só sabe falar mal), o presidente considera que entrar para a política é coisa de macho. Mas será que tanta testosterona assim é necessária para resistir a uma rachadinha aqui, uma propininha lá?

O presidente já deixou claro diversas vezes que tem pena de si próprio. Ninguém entende como ele é bondoso, virtuoso e abnegado. Ninguém percebe que suas campanhas contra a vacina e o distanciamento social são pelo bem de todos – inclusive dos 190 mil mortos. Ninguém enxerga que suas pretensões de fechar o Supremo e o Congresso eram absolutamente benignas. O pessoal só critica.

Agora, Bolsonaro pede ao brasileiro que estenda sua complacência a todos os políticos corruptos. Espírito de Natal é isso aí.

Foi um maravilhoso sincericídio. O presidente deixou transparecer o que vai na sua mente e no seu coração. O Bolsonaro justiceiro nunca existiu. Era uma farsa. O que sempre houve é um político que floresceu não apenas no Centrão, mas no baixo clero do Centrão, e que ali teria continuado, estudando a tecnologia para a implementação de rachadinhas e o uso de funcionários fantasmas, se o fato de não ser levado a sério não machucasse tanto seu ego.

O que sempre existiu foi o político que, na hora de escolher quem apoiar, escolhe Marcelo Crivella.

—–

PS1: Acho que o mais grave na decisão de Kassio Marques não é sua interpretação do artigo impugnado, mas o fato de ela ser um desrespeito ao plenário do STF, que avaliou a constitucionalidade da Lei da Ficha Limpa, de maneira bastante minuciosa, em um julgamento recente. Mais uma vez, um ministro do Supremo se comporta como um juiz de primeira instância que contraria o tribunal. É difícil levar a sério uma corte que não consegue acatar suas próprias decisões.

PS2: Há uma enorme gritaria no meio político contra a prisão preventiva de Marcelo Crivella. Mas, se o esquema de corrupção implementado pelo prefeito já durava quatro anos e tinha tantas ramificações, não havia outro caminho a tomar. Deixar livre quem está no topo de uma organização criminosa é a receita para que rastros e provas sejam apagados. A prisão preventiva existe para impedir que isso aconteça.