A tarde em que falamos pelo telefone o termômetro marcava 32 graus no Rio de Janeiro e 33 em São Paulo. Comentei com Zuenir Ventura que havia escrito um comentário na minha página no Facebook dizendo: “Hoje, em São Paulo, se você tiver água e luz em casa não tem motivo para se queixar da vida”. Ele riu e imediatamente lembrou de uma marchinha carioca dos anos 50: “Rio cidade que seduz. De dia falta água, de noite falta luz.” Emendou dizendo que alguém deveria fazer uma versão para São Paulo.
O assunto não veio do nada. Zuenir acabara de vir da última prova de roupa do seu fardão com o qual vai assumir a cadeira de número 32 na Academia Brasileira de Letras em 6 de março. Estava preocupado com o calor. “Já até vi a previsão do tempo, mas parece que em março a coisa ainda está fervendo”. O “look” de fato não ajuda. O fardão, confeccionado tradicionalmente por um alfaiate que serve à Academia, tem mangas compridas e é fechado até pescoço. Os detalhes são bordados a ouro por uma costureira. “Vamos rezar para o ar condicionado estar funcionando bem”,
disse ele.
Autor de “1968, o Ano que não Terminou” e reportagens premiadas como a série que deu origem ao livro “Chico Mendes- Crime e Castigo” (Companhia das Letras) e a outra sobre Vigário Geral que gerou o livro “Cidade Partida”, o jornalista/escritor, e agora imortal, está longe de pendurar as chuteiras depois de ganhar o campeonato.
Como qualquer mortal ele ainda trabalha. E muito. Desde a hora em que acorda (cedo) até a hora em que se recolhe, ele obedece a uma agenda agitadíssima administrada pela mulher, Mary, sua companheira há 52 anos. Na tarde nervosa e quente daquela sexta-feira, ele terminava o texto do espetáculo feito em parceria com Ziraldo e Luis Fernando Veríssimo. Um musical sobre a velhice, mas, segundo ele, feito “Por velhos muito bem humorados”. O musical
estreia este mês no Teatro Casa Grande no Rio.
Gente – Como anda a vida?
Zuenir – (Suspira). Agitada. Não consigo parar. Agora estou lendo e relendo os textos de Ariano Suassuna. Preciso fazer um discurso de mais ou menos duas horas sobre a obra dele para o dia da posse. É quase uma defesa de tese. Mas sei que não pode ser grande, se não já viu né?
Gente – As pessoas dormem?
Zuenir – É. Já fui a posses lá e eu mesmo dei umas “pescadas”. E ainda com esse calor…
Gente – Você conhecia bastante a obra de Ariano Suassuna, era fã?
Zuenir – Sim, desde que vi o “Auto da Compadecida”. Acho que era 1957. Eu estava na faculdade. Achei aquilo maravilhoso. É um dos grandes clássicos do teatro.
Gente – Vestir o fardão, estar na Academia é realmente importante?
Zuenir – Vestir o fardão não é importante. Aliás, só se veste em raras situações, quando a solenidade exige. Mas, me parece útil participar de uma instituição como a ABL, que cada vez mais interage com a sociedade, através de visitas escolares, cursos, seminários, palestras. Poucas entidades culturais no país têm a sua história e o seu peso simbólico. Depois da eleição, as pessoas me paravam na rua para dar os parabéns. Ninguém tinha dúvida da importância.
Gente – Você chegou a levar para sua casa a principal testemunha do assassinato do Chico Mendes. O Genésio dos Santos, então um menino. Por que fez isso?
Zuenir – Eu tinha duas opções: descrever a morte dele ou evitá-la. Preferi evitar, contrariando o que ensinei durante 40 anos em faculdades de Jornalismo, que o repórter tem que manter distância da notícia. Não só não mantive distância, como trouxe a notícia para dentro de casa. Era uma situação-limite e eu faria de novo.
Gente – Qual foi o final dessa história?
Zuenir – Genésio acabou de escrever um livro sobre a sua saga que vai ser editado pelo Instituto Vladimir Herzog. Ele está bem, no interior do Acre.
Gente – Como jornalista, como viu o episódio do jornal Charlie Hebdo? Não há risco da luta contra o terrorismo islâmico se transformar num processo xenofóbico, contra os mulçumanos na Europa e no restante do mundo?
Zuenir – Esse é o grande desafio da civilização ocidental: dar combate sem trégua ao terrorismo sem cair na islamofobia,ou seja, na discriminação e no preconceito contra a comunidade muçulmana, que é maior, melhor e não pode ser confundida com seus fundamentalistas.
Gente – Por que matam em nome do Alá?
Zuenir – Por fanatismo, obscurantismo e, na melhor das hipóteses, pela crença de que 72 incansáveis virgens esperam no paraíso por cada um que morre por Alá.
Gente – No Brasil, existe esse risco de radicalização? Afinal, sempre brincamos com Alá, “Há um aiatolá para atolar”, da Rita Lee, “Alá meu bom Alá”, da marchinha de carnaval…
Zuenir – Desse fundamentalismo não corremos o risco. A legislação brasileira proíbe a intolerância religiosa, embora tenha havido manifestações de determinadas correntes evangélicas neo-pentecostais contra cultos afro-brasileiros como a Umbanda e o Candomblé. Sem falar na homofobia, ou condenação de costumes, como a homossexualidade. Mas o estado é laico e a população prefere a diversidade.
Gente – O jornal impresso vai acabar?
Zuenir – Muitos dos que disseram que o jornal ia acabar acabaram antes. Isso foi dito quando surgiu a televisão e mais recentemente com a internet. Não acredito em antagonismo entre os veículos, acredito em convergência. Mas é certo que cada tecnologia nova ao surgir exige o aprimoramento da anterior. Aconteceu com o advento do cinema, da televisão e da internet. O jornalismo que se faz
hoje não é o mesmo de quando comecei.