Se há uma lição que podemos tirar da nova autobiografia de Nelson Motta, é que para ter a sorte de “estar no lugar certo, na hora certa” é preciso muito talento. Com o título tirado de uma pitoresca expressão popular que descreve os bebês que nascem iluminados pela fortuna, “De Cu pra Lua – Dramas, Comédias e Mistérios de um Rapaz de Sorte” é uma coleção de 150 curtos e incríveis episódios da vida do autor. A primeira impressão que se tem ao ler o livro é que, ao longo de seus 75 anos, o produtor, compositor, crítico e escritor participou de quase todos os episódios relevantes da música brasileira – e sempre de camarote.

ÍDOLO Com João Gilberto, em Nova York: das canjas na sala de casa ao sucesso no Carnegie Hall (Crédito:Divulgação)

O ponto de partida do livro é a sorte que o autor tem, assunto sobre o qual ele filosofa mais de uma vez: “Um dos principais problemas da sorte é a inveja que desperta. É compreensível. Uma pessoa se esforça, trabalha e rala, e é outra que ganha o emprego por um golpe de sorte. Ou pela sorte de conhecer alguém na hora certa. A sorte não é justa, não tem critério nem respeita mérito; é aleatória e irresponsável.” Reflexões como essa permitem ao autor minimizar a visão inteligente e a intuição para o sucesso que sempre acompanharam sua vida profissional. No fundo, é uma tentativa de mostrar humildade diante de experiências tão extraordinárias.

O peso do calhamaço de quase 500 páginas é uma contradição em relação à leveza dos casos narrados. Mesmo quando o autor trata de temas mais sérios, como a morte dos pais ou da atriz Marília Pêra, com quem teve duas filhas, Nelson consegue imprimir uma tranquilidade de quem é muito bem resolvido, talvez fruto da experiências com um de seus gurus, o professor de Harvard John Kao, ou talvez da sabedoria do pai, Nelsão, ou da mãe, Xixa, coadjuvantes apresentados com carinho e reverência.

 

Personalidade agregadora

Uma característica que chama a atenção é o texto na terceira pessoa. A opção, segundo o autor, é para dar imparcialidade a suas narrativas e para “tratar o personagem com isenção”. Em termos de estilo, Nelson escreve como se fala, em tom de crônica, sem deixar que pretensões literárias estejam acima na hierarquia dos enredos em si. O que importa é o fato narrado, o clima do momento, as relações entre os personagens. Embora não se canse de repetir que “seria um músico medíocre”, o ritmo de suas palavras prova o contrário: há frases de efeito que poderiam estar nas estrófes de algum de seus sucessos como letrista.

LANÇAMENTO – De Cu pra Lua Dramas, Comédias e Mistérios de um Rapaz de Sorte Editora Sextante/Estação Brasil. Preço: R$ 69 (Crédito:Divulgação)

O livro surpreende pela naturalidade com que são narrados quase 150 “causos”: em uma noite, Nelson assiste a um concerto de Miles Davis em Los Angeles; no outro dia, está indo a um jogo de futebol do Cosmos, em Nova York, no helicóptero do proprietário do time. Em um momento, está batendo um papo íntimo no apartamento de João Gilberto em São Paulo; no outro, está na festa de aniversário da filha do bicheiro Anísio de Nilópolis, patrono da Beija-Flor, no Rio. Nelson Motta gosta de estar no meio de tudo o que acontece, mas tudo que acontece também gosta de ter Nelson Motta como testemunha.

 

Até os episódios que podiam dar errado dão certo, a exemplo do assalto a seu apartamento na Avenida Vieira Souto. O diálogo travado entre o protagonista e os bandidos é tão divertido que o clima de tensão dá lugar a um quadro de comédia. Cada texto é uma pílula de bom humor, um mantra que defende que a simpatia é o ingresso mais rápido para a felicidade. Nelson – ou Nelsinho, como ele mesmo se chama – é o arquétipo do “carioca gente boa”, tipo inventado pela Bossa Nova e que anda cada vez mais raro nos dias de hoje.

Há também os casos amorosos, abordados com discrição e respeito. Sobre o namoro com a chiquérrima fashionista Costanza Pascolato, cita encontros em Nova York e duas lições inesquecíveis: “elegância é adequação” e “quem é elegante se veste para si mesmo, não para os outros”. A namorada atual, Drica, ganha poemas, elogios e um “livro só para ela”.

Em uma autobiografia sincera e reveladora, onde conta até suas primeiras aventuras sexuais e experiências com drogas, Nelsinho consegue se sair bem com todo mundo. Isso dá a sensação de que nada do que ele viveu de bom na vida aconteceu por acaso, mas por mérito de sua personalidade agregadora e amiga. E isso não é uma questão de sorte.

 


ENTREVISTA

“Meu ouvido é ruim, meu ritmo é precário”

INFÂNCIA Valores familiares: lições de ética com o pai e de empatia com a mãe (Crédito:Reprodução)

De onde veio a ideia para o nome do livro?
O título surgiu antes do livro. É uma expressão popular que representa a sorte, o ponto de partida do livro. Tem histórias de sofrimento, dramas e comédia, mas quis explorar os mistérios da sorte, coisas que não têm explicação científica e são totalmente aleatórias.

Por que você escreveu na terceira pessoa?
O rapaz de sorte, o protagonista, é um personagem que eu conheço muito bem, desde que ele nasceu. Essa opção me distanciava do tal personagem, que eu não via como eu mesmo, mas como outra pessoa de quem fui testemunha. Assim fiquei à vontade para falar sobre ele, debochar, fazer piada. Tive liberdade até mesmo para elogiá-lo.

O livro descreve você como um homem de sorte. Isso não subestima o seu talento?
Quis me distanciar da minha obra para poder falar sobre ela. Desse jeito fiquei mais neutro para dizer frases como “Nelsinho teve uma ideia brilhante”, coisas assim.

As pessoas escondem os próprios defeitos em autobiografias, mas você preferiu se expor. Por quê?
As histórias da juventude formaram minha personalidade. São lindas e puras, foi um prazer revisitá-las. Eu me achava horroroso. Em um programa de auditório, gritaram “lindo, lindo”, aí descobri que não era feio. O problema era na minha cabeça.

Qual a importância da sua família?
A preocupação ética que vem do meu pai é a grande lição do livro. Minha maior sorte foi ter sido filho do meu pai e a da minha mãe. Já vim de fábrica com coisas que não fiz nada para merecer.

Você sempre conviveu com músicos de peso. Foi frustrante não ser um deles?
Brevemente, mas logo me realizei como letrista. Foi autocrítica. Edu Lobo, Chico Buarque, Francis Hime, eles tinham o dom. A música era fácil para eles. Para mim, era uma dificuldade. Por mais que eu estudasse, eu não seria tão bom quanto eles. Meu ouvido é ruim, meu ritmo é precário, cantar e bater palmas para mim é uma dureza. Fazer letras foi um jeito de continuar com a música.

E logo vieram convites para produzir discos.
Sim, isso me deu muita alegria. Trabalhar com Elis Regina, Marisa Monte, Daniela Mercury. Isso me deu condições de estar na música sem ser músico. Como produtor, eu não tocava instrumentos, mas “tocava músicos”, ou seja, eu orientava “você faz isso, o outro faz aquilo”…

E como letrista?
Aí eu me realizei. Tive grandes hits como “Dancin Days”, “Como uma onda”, “Bem que se quis”. É tudo que um compositor deseja: que suas canções sejam apropriadas pelo público. As músicas estão aí até hoje. A música perdeu um instrumentista medíocre, mas ganhou um bom letrista, bom produtor.

E um bom escritor também, não? Você escreveu muito sobre música.
Sim, “Noites Tropicais”, a biografia do Tim Maia, “101 Canções”. A música sempre foi minha grande musa.

Houve também musas reais, como Elis Regina e Marisa Monte. Há pouco tempo você elogiou a Anitta. Qual é a maior qualidade dela?
É uma grande artista. Gostei dela desde o início, tive a intuição de que era especial. A realidade é que estamos falando de uma cantora dos novos tempos, do século 21, que não pode ser avaliada pelos critérios das cantoras dos anos 1970 e 1980. Assim como essas não podiam ser comparadas com os grandes nomes da Era do Rádio, por exemplo. Com inteligência e talento, a partir de um gênero maldito, o funk, ela criou uma música sofisticada e internacional.