Sem divulgar músicas inéditas desde 2016, quando lançou “Awaken, My Love”, Childish Gambino, nome usado pelo ator Donald Glover em seus projetos musicais, lançou um manifesto em forma de clipe. “This is America” foi colocado em seu canal no Youtube no sábado e já passa das 39 milhões de visualizações. Além da música, grande parte do apelo do vídeo está na enorme quantidade de referência

Dirigido por Hiro Murai, parceiro de Glover na série “Atlanta”, do canal FX, o clipe é uma leitura do rapper sobre alguns dos mais sérios problemas sociais dos Estados Unidos, do racismo à cultura armamentista. No meio de tanta informação, fica fácil perder as referências. Preparamos um guia com algumas explicações sobre elas.

1) O visual de Childish Gambino

O rapper aparece ao longo de todo o vídeo sem camisa, vestindo apenas uma calça cinza. Algumas pessoas viram uma referência ao comediante e ativista negro americano Richard Pryor (1940-2005), outros viram similaridades entre a calça que ele usa e o uniforme dos soldados confederados na Guerra Civil americana. A imagem mais forte, no entanto, é a do músico nigeriano Fela Kuti (1938-1997).

Como apontou o ativista social Michael Skolnik em seu Twitter, “Fela Kuti reverbera no corpo de Gambino em ‘This is America’”. Criador do afrobeat, Fela foi um dos maiores ativistas africanos até sua morte, defendendo temas como o pan-africanismo e criticando o governo nigeriano.

2) Música de resistência

A primeira cena, em que Childish Gambino atira em um homem tocando violão, pode ser entendida como uma tentativa de silenciar manifestações de protesto dos negros americanos com a música, representada principalmente pelo blues, gênero que evoluiu a partir do canto dos escravos nas lavouras.

O violonista foi confundido com o pai de Trayvon Martin, jovem de 17 anos que foi morto em 2012, na Flórida. Seu assassino foi considerado inocente.

Policiais de Los Angeles reprimem manifestantes que protestavam contra o assassinato do jovem Trayvon Martin

3) A América de Jim Crow

A expressividade do artista durante o clipe chama a atenção e é carregada de simbologia. Ele estaria, nessas “caretas”, se referindo novamente a Jim Crown, um personagem interpretado por um branco que fazia sátiras de pessoas negras por meio da prática de black face. Mais tarde, o nome Jim Crow foi usado em uma série de leis que reforçaram a segregação racial no sul dos Estados Unidos. Passou também a designar um período em que a população negra não tinha praticamente nenhum direito. O personagem também virou uma alegoria pejorativa dos negros americanos. Ao longo do vídeo, Gambino representa outros estereótipos associados à população negra, do “entertainer” ao agressor violento.

4) Os celulares como distração (ou ferramentas de denúncia)

Em determinado momento, crianças vestidas com roupas escolares começam a dançar felizes em volta do cantor. Caretas e passos de dança revelam outra crítica de Gambino: é fácil se distrair dos problemas que realmente importam, seja por conta da própria indústria do entretenimento, seja por conta das redes sociais. Enquanto o espectador acompanha a atuação do cantor, uma série de eventos acontecem no fundo do galpão em que o clipe é rodado. Jovens aparecem gravando a ação em seus celulares, em uma imagem que remete à série “Black Mirror” e mostra como as pessoas se tornam insensíveis ao sofrimento alheio em troca de cliques e curtidas. Há outras leituras possíveis, no entanto. Os celulares têm sido usados como ferramentas de denúncia contra abusos policiais que antes da popularização dos smartphones não poderiam ser registrados. Há ainda o caso de Stephon Clark, morto a tiros no quintal de sua casa, em Sacramento, pela polícia. Os agentes acharam que ele estava armado, mas Clark apenas segurava um celular.

5) Levante de Soweto

O Levante de Soweto representou um salto na luta contra o Apartheid na África do Sul

A roupa escolar usada pelas crianças seria uma referência à usada por jovens da África do Sul no Levante de Soweto, em 16 de junho de 1976. O período era marcado pelo apartheid e os estudantes foram protestar contra a má condição que eram submetidos nas escolas por serem negros.

A manifestação foi reprimida pela polícia e centenas de estudantes negros foram mortos. Um estudante de 13 anos, Hector Pieterson, foi uma das vítimas e se tornou um símbolo de luta contra o racismo por causa de uma foto em que é carregado ensanguentado. Em memória desses jovens, em 1991, foi instituído o dia da criança africana.

 

6) Cultura armamentista

Uma das críticas do cantor é em relação à política de armas nos Estados Unidos. Nas imagens é possível ver que depois que ele atira nas pessoas, as armas são cuidadosamente colocadas em cima de um tecido vermelho e carregadas com todo cuidado. Porém, as pessoas mortas são arrastadas sem nenhum cuidado. A ideia seria mostrar como, no inconsciente coletivo do país, as armas passam a valer mais do que vidas negras. Essa seria uma referência ao movimento Black Lives Matter. O pano vermelho, então, representaria o sangue das pessoas negras nas mãos daqueles que se importam tanto com o armamento.

Em outra cena, ele aparece atirando contra um coral religioso. Essa seria uma referência ao caso do massacre de Charleston, que aconteceu em 2015. Na época, um supremacista branco invadiu uma igreja da comunidade negra e matou nove pessoas. O assassino era um jovem branco de 22 anos e, em seu julgamento, Dylann Roof afirmou que não se arrependia.

7) Cavaleiros do apocalipse

Um cavaleiro usando uma roupa escura em um cavalo branco é uma referência que aponta para os Cavaleiros do Apocalipse, personagens bíblicos do livro do Apocalipse. O que não fica claro é qual deles está representado nas imagens. O cavalo branco é normalmente associado à peste e à doença. Outra leitura possível é uma referência ao “pale horse”, da tradução da Bíblia para o inglês: “Olhei, e diante de mim estava um cavalo amarelo pálido. Seu cavaleiro chamava-se Morte e o inferno o seguia de perto.” O inferno é representado pelo carro de polícia que segue o cavaleiro.


8) Referência ao filme “Corra!”

No final do clipe, Gambino aparece correndo em um beco escuro. Um grupo de pessoas brancas o persegue. A referência seria ao filme “Corra!”. Uma das cenas mais emblemáticas do filme acontece quando o ator Daniel Kaluuya é hipnotizado e consegue observar a si mesmo, sem conseguir se mover. O olhar de Gambino ao aparecer no final do clipe é semelhante ao que é feito pelo personagem no filme. O diretor de “Corra!”, Jordan Peele, explicou o conceito por trás desse momento, conhecido como “sunken place”: Significa que somos marginalizados. Não importa quanto alto é nosso grito, somos silenciados pelo sistema”. A ideia é reforçada pela letra no final da canção: “Você é apenas um homem negro neste mundo/ dirigindo importados caros”. Mesmo com o dinheiro que recebem, até artistas como Gambino e Young Thug, que canta esse verso, sofrem com a realidade do racismo nos EUA.

9) Letra

Em um dos versos, ele afirma “We just wanna party, party just for you” (“Nós só queremos nos divertir, diversão só para vocês”). Essa seria uma crítica aos brancos por só olharem para os negros quando eles são uma forma de entretenimento. Em outro, ele faz uma evidente referência à violência policial nos Estados Unidos dizendo “look at how I’m livin’ now, police be trippin’ now” (“Veja como estou vivendo agora, a polícia está viajando agora”).