Em menos de oito meses, a chanceler Angela Merkel deixará o poder. As eleições gerais de setembro, que levarão a um novo primeiro-ministro, serão o pleito mais importante para a Europa este ano. E também para o mundo, já que Merkel foi uma líder essencial nos 16 anos de gestão. Para a consultoria Eurasia, o “fim da era Merkel” é um dos principais riscos para o continente em 2021. O principal candidato para sucedê-la é, desde já, Armin Laschet, que foi eleito líder do CDU (União Democrata-Cristã), partido de centro-direita, no último dia 16. Se triunfar, sua tarefa não será apenas comandar a maior economia europeia. Precisará se mostrar à altura da gigantesca tarefa empreendida pela atual chanceler. Resumindo a importância de Merkel, ela manteve a Europa unida em um momento crucial de ascensão populista, que ameaçou o bloco e levou à saída do Reino Unido. Essa crise está ligada à perda de liderança mundial dos EUA e também ao crash financeiro de 2008. Nesse período conturbado, a chanceler assumiu um papel de liderança global e manteve a Alemanha como centro de gravidade político do planeta.

CONTINUÍSMO Armin Laschet disputa em setembro com programa de Merkel (Crédito:Andreas Arnold)

Para atingir esse reconhecimento, ela foi obrigada a conciliar os pilares da União Europeia com mudanças importantes. No ano passado, abandonou a política histórica de austeridade fiscal alemã para abraçar um pacote de 750 bilhões de euros de ajuda para os outros países. Sua habilidade em persuadir países como Polônia e Hungria a manterem a disciplina com gastos públicos e ao mesmo tempo se comprometerem com a democracia ajudou a afastar o risco de ruptura num bloco já estressado pelo Brexit. Também resistiu à ameaça representada por Donald Trump, que atacou a globalização e ironizou o próprio conceito de blocos econômicos, que chamou de ultrapassado. O ex-presidente americano abandonou os tradicionais aliados americanos, inclusive a Alemanha. Merkel soube administrar a ação populista de Trump com sua “real politik”, apostando na volta dos EUA à sua doutrina tradicional de fiador da segurança mundial — como volta a acontecer agora com o governo Joe Biden. Além disso, Merkel rejeitou a guerra comercial contra a China patrocinada por Trump ao referendar um acordo que amplia os investimentos europeus no gigante asiático.

Contra o populismo

A alemã também teve papel fundamental diante do caos no Oriente Médio, causado pela intervenção americana desastrada no Iraque. Foi a líder determinante para a Europa abrigar os refugiados em 2015 e 2016, na maior crise migratória na Europa desde a Segunda Guerra. Mostrou uma visão humanitária e estratégica. Isso despertou pela Europa grupos populistas de direita, que usaram a xenofobia como plataforma política. Mas Merkel conseguiu conter as críticas internas e externas e se fortaleceu ainda mais internacionalmente. Por isso, foi escolhida pela revista “Time” como a “pessoa do ano”. Na pandemia do ano passado, como numa prova final da força de seu legado, convocou os alemães a adotarem medidas drásticas contra a doença em tom professoral e emocional — uma raridade. Sua popularidade disparou, acima dos 80%.

Laschet sai na frente, mas as eleições de setembro são imprevisíveis. O CDU, de Merkel, continua sendo o partido mais forte do país com 37% das intenções de voto, segundo sondagem da TV ZDF. Os verdes são a segunda força do país, com 20% dos votos. O social-democrata SPD vem em terceiro, com 16%. Escolhido em uma convenção conturbada em meio à pandemia, Laschet é um político moderado que governa a Renânia do Norte-Vestfália, o Estado mais populoso do país. Ele tenta colar sua imagem à de Merkel, dizendo ser um candidato de continuidade. É um nome mais palatável para o Partido Verde, que deve formar aliança com o conservador CDU em setembro. Na disputa pela liderança da legenda, derrotou o empresário conservador Friedrich Merz em segundo turno por 521 votos a 466.

Laschet terá dificuldades sobretudo em superar o carisma da atual chanceler. Merkel, que cresceu sob o regime comunista da Alemanha Oriental, conseguiu ascender evitando brigas públicas com seus oponentes. A atitude não confrontacional até gerou um neologismo: merkiavelismo. Seria algo como conseguir vencer disputas pelo cansaço. Essa habilidade para se impor no plano doméstico foi reproduzida na política externa e foi essencial para sua influência internacional. “Merkel conseguiu imprimir um jeito próprio de governar”, diz Carolina Pavese, professora de Relações Internacionais da ESPM. Para a especialista, a chanceler modernizou o partido, composto por uma maioria de homens conservadores e cristãos. Fez o mesmo com o país. “É uma conservadora com os olhos voltados para o futuro.” O pragmatismo reforçou a solidez da economia alemã. Merkel sairá de cena como uma da maiores líderes alemãs, senão a principal, desde Konrad Adenauer, que liderou a reconstrução do país no pós-guerra, lançou as bases da social-democracia e estabeleceu a aliança estratégica com a França, que foi o embrião da União Europeia. Já Merkel herdou um mundo convulsionado com a perda de hegemonia dos EUA, a ascensão chinesa e os ataques ao multilateralismo. Conseguiu manter a Europa unida como pilar da democracia e da cooperação global. Para seguir no mesmo rumo, o continente precisará de mais líderes habilidosos.

Colaborou Fernando Lavieri