Há 60 anos, Jânio Quadros, o folclórico presidente da vassourinha, cujo jingle musical de campanha prometia varrer a bandalheira do País, tentou um autogolpe. Numa jogada arriscada, alegando ameaças de “forças terríveis”, que supostamente contra ele se levantavam e o infamavam (palavras do próprio), comunicou por meio de um bilhete ao Congresso que estava abandonando a Presidência da República. Esperava ser reconduzido pelas Forças Armadas, pelos parlamentares e até pelo povo, que lhe implorariam a reconsideração do ato e, assim, abririam a ele espaço para um maior controle do Estado. Não deu certo. No decorrer dos eventos, com o Brasil convulsionado por uma polarização política tacanha, o terreno estava sedimentado para a tomada de poder militar, no que se converteu no período mais sombrio de nossa existência. Foram mais de duas décadas de uma ditadura cruel e implacável. A repetir a história como farsa, um certo capitão Bolsonaro, agitador por natureza e arrivista por convicção, tenta nos dias de hoje, em pleno século 21 e em total dissintonia com os avanços do mundo globalizado, o corolário de um golpe. Torto, sem motivo e em absoluta afronta à Constituição. Bolsonaro não mede limites. Caudilho de carteirinha, desconsidera o drama da crise pandêmica que verga o País. Não se comove com o sofrimento latente de desempregados, de empreendedores falidos, de famílias inteiras órfãs, dizimadas pela Covid. Bolsonaro tem foco e atenção exclusiva na meta de sua vida, de se manter no poder. Realiza o pior governo de todos os tempos da Nação. Um ogro no trato, autoritário nos desmandos, absolutamente inconsequente nos movimentos, não aceita deliberações dos demais poderes. Usa do ardil manjado de acusar outros setores por aquilo que pessoalmente faz.

Sugere o STF e o TSE mancomunados diabolicamente na tentativa de “arrebentarem a corda”. Exatamente como deram cabo a isso? O mandatário não gostou da resistência ao voto impresso, sonho que acalenta para uma eventual narrativa de fraude. Denuncia, sem provas, a possibilidade da tal fraude, mas tenta, na verdade, recorrer a ela, caso seja necessária no cambalacho da reeleição. Ao não aceitar a escolha da Suprema Corte e o referendo parlamentar sobre o assunto do voto impresso, age como soberano que não pode ser contrariado. Mesmo com o Congresso (a “Casa do povo”) rejeitando por maioria absoluta a ideia. Não importa. Apenas a escolha plenipotenciária e indiscutível do inquilino do Planalto vale. Do contrário, ele bota para quebrar e arrebentar. Como quer agora. É a ameaça a pairar no momento. Uma balbúrdia com data marcada para o próximo Sete de Setembro. Justamente aquela na qual se comemora a Independência do Brasil. A analogia entre os dois eventos é forçada pelos organizadores. Muito embora não guardem qualquer semelhança entre eles. Aqui se trata de mero levante ilegal, arbitrário e inconsequente. Bolsonaro incita hordas de adoradores a se insuflarem contra a Suprema Corte, o Parlamento e contra qualquer um a aparecer no seu caminho de gestão totalitária. Insinua a adesão de alas da Polícia Militar, como a mostrar o apoio das armas, intimidando opositores. Eis o tom de quem hoje ocupa o Palácio do Planalto. Alguém ainda pode enxergar nele qualquer sinal de civilidade, equilíbrio e sensatez? A pergunta procede frente ao fato de restarem ao menos 16 meses de condução do País nas mãos de um governo cujo fundamento é o da ameaça a poderes, o do golpismo escancarado e o da sabotagem institucional, ao arreganho da Carta Magna. Que brasileiro pode seguir tranquilo em meio a tantos sobressaltos, irresponsabilidades e crimes? Não há trégua.

Conciliação. Entendimento. Nada. O capitão do serrado não quer conversa. Descarta diálogo com governadores, que pediram a harmonia. Pensa apenas na conclamação da revolta. Até com invasões. Mesmo de embaixadas, como a da China. E resta a pergunta: a quem pode interessar manter Bolsonaro no poder, diante de tantos delírios? O cenário é de pesadelo. Fora de hora e sem motivo real. O “mito” Messias enxerga o próximo Sete de Setembro como um “divisor de águas”. A título de quê? Em nenhum canto do mundo civilizado, convocação com uma pauta da natureza sugerida é tida como democrática, de mera liberdade de expressão ou de pensamento. Trata-se de uma espécie de motim à ordem constituída. Interferência gravíssima. Imaginar PMs participando do movimento é ainda mais inacreditável. São eles fiadores da estabilidade. É inevitável reiterar e alertar aos incautos: não estamos mais nos idos de 1961 do Jânio aventureiro, nem no longínquo 1964 do descabido golpe. Evoluímos de lá para cá. O Brasil precisa de trégua, sem aventuras temerárias. A escalada dos atos propostos pelo capitão e por seu gabinete do ódio vão na direção contrária. Um retrocesso rumo ao obscurantismo. Todos nós sabemos: o cenário-pesadelo irá cessar apenas no momento em que o protagonista de tamanho alvoroço for apeado do poder. Não antes. E ele já deu evidentes gestos no sentido de não recuar um milímetro nas pretensões acalentadas. A quartelada de Sete de Setembro será, provavelmente, apenas mais uma das inúmeras injunções desse fanatismo bolsonarista a caminho. O presidente quer milicianizar as Forças Armadas, como instrumentos de interesse privado dele. Não do Estado. Organiza, financia e insufla atos para passar a falsa impressão de um País convulsionado. Na verdade, o grande arruaceiro é o próprio. Incorrigível. Deixando perplexos não apenas brasileiros, como o mundo inteiro. Blefador compulsivo, piora o que já é ruim, passando por cima de quase 600 mil cadáveres de vítimas da pandemia. Um perverso, insensível, deplorável e pusilânime ser a fazer rodízio de destruições em série sobre o que restou da Nação.

Não cabe mais apaziguamento. Apenas resistência ao berrante da anarquia. Em 1961, as futricas de Jânio Quadros foram tratadas como exóticas, inofensivas, e deu no que deu. Não é aconselhável incorrer no erro novamente. A crise de governança que veio do nada, no lombo de um mandatário a esparramar bobagens, pode provocar sintomas e consequências bem mais sérios. Um despautério falar em voto impresso e tanques nas ruas, quando milhares estão morrendo por Covid, de fome , sem condições mínimas para seguir adiante. É hora de interromper o triste espetáculo em andamento. As micaretas esculhambadas de blindados fumegantes, caminhões e motocas, paródia de corrida maluca, são típicas de republiqueta das bananas. Mais adequadas seriam em filmes de comédia, a relembrar o pior e o pitoresco da política do atraso. No Brasil que almeja a retomada do desenvolvimento e da estabilidade soa hoje como uma disruptura repulsiva.