O Supremo Tribunal Federal expôs hoje, mais uma vez, a natureza obtusa e autoritária do bolsonarismo. Fez isso ao analisar o dossiê sobre antifacistas compilado pela Secretaria de Operações Integradas (Seopi), um dos órgãos do Ministério da Justiça.

 

Os juízes do STF não encontraram nenhuma razão de segurança pública para a existência do documento – zero indício de que os 579 policiais e 4 professores universitários monitorados estivessem envolvidos em atividades que pudessem trazer algum risco para o país.

 

O dossiê, segundo a corte, era político. Como disse o ministro Alexandre de Moraes, tratava-se apenas de listar, Estado a Estado, sem nenhuma justificativa, cidadãos com posicionamento ideológico contrário ao governo. E de compartilhar essas informações com quem poderia prejudicar essas pessoas, seus superiores hierárquicos no serviço público.

 

O tribunal mandou que a coleta de dados seja interrompida imediatamente. O placar foi de 9 a 1, uma vez que o ministro Marco Aurélio julgou que a ação não deveria ter sido analisada pelo STF.

 

Saem mal do julgamento o ministro André Mendonça e o Procurador Geral da República, Augusto Aras.

 

O dossiê começou a ser montado em 24 de abril, quando Sergio Moro deixou o Ministério da Justiça. André Mendonça só assumiu a pasta três dias depois, mas isso não o exime de responsabilidade, mesmo alegado que só ficou sabendo da existência do dossiê pela imprensa.

 

Mendonça tinha à frente da Seop um homem de confiança, o coronel Gilson Libório, com quem já trabalhava em sua função anterior, na Advocacia Geral da União. Ele demitiu Libório antes de instaurar uma sindicância na Seop, o que deixou perplexa a  relatora do caso, a ministra Carmen Lúcia: “Por que demitir antes de averiguar se houve algo de errado?”, perguntou ela.

 

Com seu jeitinho manso de padre inquisidor, daqueles que mandam gente para a fogueira com uma prece nos lábios, Mendonça também adotou uma atitude de desafio velado ao STF a partir do momento em que o assunto foi parar na Justiça, por iniciativa do partido Rede.

 

Assim que Carmen Lúcia pediu esclarecimentos à sua pasta, ele respondeu que o acesso do Judiciário ao dossiê só poderia ser franqueado “em última instância”, pois ele poderia expor o sistema de inteligência brasileiro e tolher as ações do Ministério da Justiça de forma irresponsável, com consequências imprevisíveis. Como àquela altura Carmen Lúcia não havia requisitado acesso a nenhum documento, apenas explicações, a resposta foi muito acima do tom necessário.

 

No começo desta semana, dois dias antes do início do julgamento, Mendonça mandou o dossiê ao tribunal. Mas nem Carmen Lúcia nem outros ministros, como Luis Fux, esconderam a estranheza e deixaram passar batida a pretensão de impedir que a papelada fosse analisada pelo STF.

 

Augusto Aras mais uma vez fez o papel de advogado do governo, e não de Procurador Geral da República. Além de minimizar a importância do dossiê, dizendo que ele só contém informações de domínio público, ele procurou justificar o trabalho da Seop dizendo que a maioria das pessoas listadas porta armas, por trabalhar na polícia, e assim poderia representar algum perigo para o Estado.

 

Alexandre de Moraes desmontou o argumento lembrando que o dossiê não indica nenhuma movimentação concreta do grupo, como a organização de uma greve ou passeata. Só incluíram os nomes numa planilha com base em posições políticas.

 

Assim como aconteceu na semana passada, quando derrubou uma medida do presidente Bolsonaro que facilitava o acesso da Abin a diversos tipos de informação sensível, o STF usou o julgamento para transmitir um recado. A corte compreende a importância das ações de inteligência e não pretende perturbá-las, nem muito menos impedi-las, desde que elas atendam interesses gerais, não do governo, e respeitem a lei.

 

Ao contrário do que aconteceu na semana passada, o julgamento teve um aspecto quase cômico. O tribunal descreveu o dossiê da Seop como mambembe, um simples recorta e cola de páginas da internet. “Do modo como foi feito está mais para bisbilhotice e fofoca do que para relatório de inteligência” disse Alexandre de Moraes. “Foi um trabalho de inteligência muito pouco inteligente.” Ou um trabalho digno das Organizações Tabajara, como disse Gilmar Mendes.

 

Mas não dá para rir. Um Estado Policial de quinta categoria ainda é um Estado Policial. Um governo que usa arapongas para identificar adversários ideológicos, levantar informações sobre eles e compartilhar essas informações com quem pode prejudicá-los, ainda é um governo que não respeita a democracia.