Antes de se tornar um gênero cinematográfico, a favela carioca já foi explorada pelo cinema de forma idealista (“Orfeu Negro”, Palma de Ouro em Cannes, 1959), sociológica (“Cinco vezes favela”, 1962), ou humanista (“Como nascem os anjos”, 1999). A favela, a planta do agreste brasileiro que deu nome ao primeiro morro carioca a acolher os excluídos do sistema (o Morro da Providência, ou Morro da Favela), virou “favela movie” nos anos 2000, com a avalanche de filmes na esteira de Cidade de Deus (2002). Seu traço marcante é a edição frenética de cenas de violência do mundo do tráfico, nos moldes do cinema de ação norte-americano. Felizmente, Pacificado não é um “favela movie”.

O primeiro diferencial do longa-metragem do cineasta norte-americano Paxton Winters em relação ao gênero da moda é a ótica feminina na abordagem da realidade do Morro dos Prazeres, no Rio de Janeiro. Tati (interpretada por Cassia Nascimento, moradora na comunidade) é uma adolescente de 13 anos que tenta se conectar com o pai, Jaca (Bukassa Kabengele, laureado com a Concha de Prata do Festival de San Sebastián), ex-líder do tráfico que deixa a prisão após 13 anos de pena. A qualidade decisiva do filme é o caráter introspectivo dos dois protagonistas — no caso de Jaca, quase meditativo —, o que torna este um drama existencial. Fortalecem o enredo feminino, Andréa, mãe de Tati, magistralmente interpretada por uma totalmente entregue Débora Nascimento; e Dona Preta, a avó, interpretada por Lea Garcia, um mito vivo do Teatro Experimental Negro.

O diretor Paxton Winters orienta a atriz Cassia Nascimento

Há um sofisticado espelhismo entre o conflito interior de Jaca e o processo de “pacificação” das favelas do Rio, iniciado em 2008 pela Secretaria de Estado de Segurança, com a justificativa de recuperar territórios ocupados por traficantes e milicianos.

Local e universal

ÓTICA FEMININA Na foto ao alto, a menina Tati (Cassia Nascimento) se esforça para se aproximar do pai, Jaca. Ele é ex-traficante casado com Andréa (Bukassa Kabengele e Débora Nascimento, foto acima): o filme aborda as relações humanas no ambiente conflituoso da favela carioca, durante operação de “pacificação”, no fim dos Jogos Olímpicos de 2016 (Crédito:Divulgação)

O filme se passa nos estertores dos Jogos Olímpicos de 2016, quando a operação das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) se revela uma fraude para gerar uma falsa sensação de segurança, uma artimanha pra gringo ver. O filme nasce, portanto, da vivência do diretor texano Paxton Winters do inócuo discurso da pacificação. Da leitura desse “texto” oficial, e da imersão no cotidiano do Morro dos Prazeres — onde ele viveu durante 5 anos — surgiu o roteiro em colaboração criativa com Wellington Magalhães, o Maga, morador da comunidade, e o documentarista e sociólogo americano Joseph Carter, que também viveu no Brasil vários anos, realizando projetos relacionados ao crime organizado.

“Sou, em primeiro lugar, um ouvinte de histórias e, depois, um contador de histórias. Mas talvez a melhor definição para meu papel seja a de um condutor de histórias”, diz Paxton Winters à ISTOÉ. Nascido no Texas, ele é um viajante de longas e densas jornadas. Antes de chegar ao Brasil, viveu 18 anos em Istambul, na Turquia, onde realizou, entre outros projetos, um documentário, acompanhando uma caravana de camelos durante 18 meses, e seu primeiro longa-metragem, “Crude” (2003).

“Jaca é um composto de várias pessoas que conhecemos”, diz Joe Carter à ISTOÉ. “O filme tem muito a nos ensinar”, afirma Maga. “A pacificação do personagem é a busca de uma nova perspectiva de vida, não tem relação com a pacificação de um governo, que era um esquema de iludir o povo. Se o Estado quiser acabar com milícia, acabar com tráfico, ele pode. E só ele querer”. O sonho que o ex-traficante Jaca tenta colocar de pé é se tornar cozinheiro e abrir um restaurante no Morro. Ponto alto do filme: articular uma relação afetiva com o alimento para a reconstrução da vida.

Com três prêmios na bagagem — Melhor Filme, Melhor Fotografia e Melhor Ator em San Sebastián — “Pacificado” chega a São Paulo para exibição na Mostra de Cinema de São Paulo. O fato de se tratar de uma co-produção Brasil-EUA, e ser dirigido por um realizador internacional, no entanto, não justifica a sua ausência das listas de cinema brasileiro, publicadas na semana passada em guias e matérias de grandes meios de circulação. Em tempo de fronteiras porosas entre os campos do conhecimento; quando radicalismos e xenofobias devem ser mais que nunca repelidos e combatidos, um salve para um drama com a qualidade de ser, ao mesmo tempo, universal e um retrato sensível da realidade brasileira.