19/02/2017 - 9:01
Apenas alguns metros separam a antiga Babilônia de Jerusalém e em ambas só se fala português. Recriadas na enorme cidade cenográfica na zona oeste do Rio de Janeiro, a segunda maior emissora de TV do país encena passagens bíblicas para transformá-las em telenovelas de sucesso.
Nos preparativos da filmagem da coroação do rei Nabucodonosor II, os atores de “O Rico e Lázaro” ensaiam uma cena pela última vez em um cenário majestoso: a reconstrução do palácio da Babilônia, com grandes esfinges, colunas com detalhes em ouro, lustres com pedras preciosas e grandes janelas por onde a luz adentra o local.
Enquanto os assistentes, usando chinelos, correm pelo palácio para retocar a maquiagem dos atores esculturais, vinte técnicos testam os três trilhos das câmeras e um dos encarregados de produção lembra, aos gritos, as instruções para os mais de 50 figurantes vestidos com túnicas.
Apesar de algumas cenas necessitarem de tecnologia 3D, a maioria é rodada nestes estúdios “hollywoodianos” que se estendem ao longo de um grande espaço. Neste quente deserto carioca, vão aparecendo um rio artificial onde passeiam burros e cabras com seus cuidadores, um grande templo e as ruas da Cidade Santa.
“Em 27 anos que tenho de profissão nunca vi um cenário como este. É um projeto muito audacioso e será uma história lindíssima. Como roteiro, a Bíblia é fantástica”, disse Edgard Miranda, emocionado por dirigir pela primeira vez uma novela ao estilo “Ben-hur” para a Rede Record, emissora do polêmico bispo evangélico Edir Macedo.
O poder da Igreja Universal
Em um país onde as novelas geram uma paixão tão grande quanto o futebol e a TV Globo é imbatível na grade com histórias que às vezes debatem o crescimento de casais gays e a discriminação racial, a Record encontrou seu nicho de mercado longe do cotidiano.
A emissora do bispo Macedo – fundador da Igreja Universal do Reino de Deus – cativou os brasileiros ao retomar histórias baseadas no Antigo Testamento, protagonizadas por personagens fictícios e profetas que, entre típicas cenas românticas e de intriga, pregam a palavra de Deus.
São história que “apresentam conflitos muito atuais com um grande selo de qualidade”, mas, sobretudo, “o grande acerto da Record foi voltar a trazer toda a família para frente da televisão” diante de outras novelas com temáticas “inapropriadas” para o horário, assegura Mirada, um carioca de 44 anos formado na TV Globo.
Com vários atores e funcionários competentes em sua folha de pagamento, a emissora que se tornou famosa os programas noturnos comandados por pastores com o lema “Pare de sofrer” começou a produzir mini-séries religiosas de forma modesta há seis anos.
Mas, diante da boa resposta do público, em 2015 apostou alto e lançou a primeira telenovela bíblica do Brasil: “Os Dez Mandamentos”, que fez grande sucesso chegando, inclusive, a desbancar alguns capítulos da novela da TV Globo e foi exportada para vários países.
Depois, a Record lançou “A Terra Prometida” e a partir de março começará “O Rico e Lázaro”, que mostra o dilema entre ir para o céu ou para o inferno de acordo com as escolhas feitas durante a vida de seus protagonistas.
“A novela dá alguns preceitos de conduta ética a serem lembrados. As pessoas estão cansadas deste cotidiano tão agressivo, tão grosseiro, onde não há respeito a muitas coisas”, assegura um dos vilões da novela, Cassius Scapin, que interpreta um padre corrupto.
Um negócio redondo
Acusado de lavar milhões de dólares arrecadados através do dízimo dos fieis em 2011, o bispo Macedo não economiza recursos para sua nova “galinha dos ovos de ouro”.
A emissora destina 230.000 dólares para cada um dos 150 capítulos de suas telenovelas. Em “Os Dez Mandamentos”, por exemplo, algumas cenas foram gravadas em Israel e Angola.
O poder das igrejas evangélicas é visível na Record e não para de crescer no país com mais cristãos do mundo, onde quase um quarto é evangélico, segundo o censo de 2010. No Rio, sua influência ficou evidente com a eleição do prefeito Marcelo Crivella, sobrinho do bispo Macedo e bispo licenciado da Universal.
O sucesso das novelas evangélicas refletiria, então, um novo Brasil?
Para Nilson Xavier, crítico de televisão e autor do “Almanaque da telenovela brasileira”, nem tanto.
“Não é que o público brasileiro seja tão religioso. O México, outro grande produtor de novelas, é um país muito mais religioso e menos liberal. Independentemente de as novelas bíblicas terem a função ou não de doutrinar, definitivamente a Record conseguiu um produto diferenciado, de grande qualidade e um negócio que, sobretudo, atrai os anunciantes”, considera Xavier.
Pronto para entrar em cena nas ruas de Jerusalém, o figurante Robespierre Costa, de 62 anos e que se converteu há 20, vê claramente o poder deste “Universal Studios” particular.
“O evangelismo se baseia em propagar a palavra de Deus pelas quatro esquinas. Se você coloca em uma novela evangélica, até quem não é evangélico se comove e as pessoas dizem ‘ah, Deus existe, Deus é poderoso’ e aí vão buscar uma igreja”, assegura.