Lurdinha é do lar.

Durante os 37 anos casada com Oduvaldo, Lurdinha acordava às 6 da manhã para fazer o café reforçado para o marido, composto por uma média, pão na frigideira com manteiga, geléia e cream cracker.

Oduvaldo, como um relógio bem ajustado, há 37 anos chega à cozinha pontualmente as 6:30, de banho tomado e nó da gravata por fazer, quando Lurdinha está tirando o café.

Ele diz bom dia enquanto termina o nó.

Ela responde e, ainda de penhoar, senta-se ao lado do marido para assisti-lo tomando café enquanto lê o jornal.
Os dois se amam, sem muita vibração, mas se amam.

Ele faz algum comentário sobre as notícias da capa.

Ela responde, quando tem o que responder.

Vinte minutos depois, ele levanta, dá um beijo na bochecha da mulher, e ela está livre para passar o dia como bem entender.

Geralmente, o bem entender consiste em limpar a casa, assistir a Ana Maria Braga enquanto prepara algo para almoçar baseado no que sobrou do jantar da véspera.

Durante a tarde, lava e passa se tiver o que lavar e passar.

Ou faz coisas do lar que a gente que não é do lar não sabe o que é. Ou não faz nada, porque ninguém é de ferro.
Até a quarentena começar.

Porque desde que Oduvaldo passou a trabalhar em home office, como chamam na firma, agora deu para acordar às 8:00.

Senta na mesa ainda de pijama e, ao invés de ler o jornal, liga a televisão. Fica ali até o meio dia, assistindo a CNN Brasil, que ele acha melhor que a Globo News.

Na hora do almoço agora deu para reclamar, porque é sobra do jantar da véspera.

À tarde, parece uma sombra, andando atrás da mulher, que para ter alguns minutos de paz, se tranca no banheiro.
A rotina dos dois mudou muito. Para pior, reconhecem. Mas os dois nunca brigam, se amam a maneira deles. Além disso, como sempre foi nos últimos 20 anos, mal se falam.

Mas a quarentena rompeu o delicado equilíbrio da relação.

Lurdinha sofre em admitir, mas não aguenta mais olhar para a cara do marido.

Na segunda-feira, Lurdinha teve um desses pensamentos fugazes, que a gente tem mesmo quando não quer ter.
“Ai meu Deus…esse homem bem que podia pegar o vírus” Ela pensou e imediatamente se arrependeu.

“Deus que me perdoe… que horror”.

Oduvaldo, no computador, pensou em entrar num site de apostas como às vezes faz no escritório, mas teve medo de ser flagrado por Lurdinha.

A verdade é que a quarentena não está sendo nada como ele imaginou.

Conviver 24 horas com a mulher é muito mais cansativo do que atender os clientes.

Por um segundo, ele também teve um pensamento fugaz.

“Bem que essa aí podia pegar covid.”

Não se arrependeu, mas riu da própria maldade.

“Aff, Oduvaldo. Você não presta” Essa quarentena estava fazendo pior para o casamento do que o próprio coronavírus.

Educados, os dois conversaram e chegaram à conclusão que precisavam de mais espaço.

Combinaram que, dia sim, dia não, cada um sairia de casa por algumas horas.

O combinado não funcionou.

Como não tinham onde ir, já que está tudo fechado e ninguém pode fazer visitas, voltavam depois de 15 ou 20 minutos.

Começaram a ter discussões mais acaloradas.

Lurdinha, que sempre foi uma santa, um dia até deu um grito.

Oduvaldo, que não mata nem mosca, levantou a mão como se fosse pregar um tapa na esposa.

Se controlou a tempo.

Porque se amam do jeito deles.

Os dias foram passando.

Quando estavam a beira de partir para as vias de fato, descobriram uma vacina.

A quarentena acabou.

Voltaram para a rotina de sempre.

Mas o casamento nunca mais foi o mesmo.

Oduvaldo começou a demorar para voltar para casa.

Lurdinha dava graças a Deus.

Seis meses depois, ele pediu o divórcio e ela aceitou.

O coronavírus fez mais duas vítimas.

Vacinadas e tudo.

Mais uma vítima do coronavírus, um tenro casamento de 37 anos