O crescente movimento contra o uso de cobaias animais no desenvolvimento de produtos deu um grande passo neste mês de março. Foi publicada no Diário Oficial da União a decisão do governo federal de proibir procedimentos com animais em pesquisas para produtos de higiene pessoal, cosméticos e perfumes. No cenário internacional, os Estados Unidos destinaram verba governamental para empresas substituírem cobaias vivas por simuladores artificiais de órgãos. Ações restritivas como essas, na opinião de especialistas, precisam ser acompanhadas de alternativas para os testes sem os animais. Uma das apostas é a utilização de órgãos em chip, tecnologia de ponta que permite recriar numa placa pouco maior do que um cartão de crédito as reações do corpo humano a novos remédios.

O engenheiro civil e químico Paulo Augusto Gomes Leão, de 36 anos, é sócio de uma startup de biotecnologia na qual desenvolve o trabalho em órgãos em chip iniciado no doutorado na USP São Carlos, em 2016. Ele insere a pesquisa no cenário da redução de uso de cobaias. “Por muito tempo elas foram necessárias para avançar nas pesquisas biomédicas, farmacêuticas. No entanto, à medida em que tecnologias se tornam mais precisas e eficazes em fornecer respostas, elas deverão suplantar o uso de animais.” Gomes Leão destaca grupos de trabalhos avançados na área no Brasil, como a equipe do professor Emanuel Carrilho, do Instituto de Química da USP, o Laboratório Nacional de Biociências (LNBio), ligado ao Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais, e os pesquisadores da Universidade Federal de Goiás.

Divulgação

“O desenvolvimento da tecnologia carece de recursos para que tenhamos mais competitividade”, analisa o cientista. “Estamos focados em atender alguns editais de fomento para iniciarmos pesquisas para testar a eficácia e segurança de fármacos em órgãos em chip. Essa área é muito abrangente, há pesquisas em bioimpressão 3D e modelos bioartificiais para transplantes.” Ele destaca explica a chamada “cocultura de órgãos em chip”, que é a técnica de cultivar diferentes tipos de células em um único dispositivo para imitar a complexidade de um ser humano. E a pesquisa é conduzida para observar as interações entre partes diferentes do corpo. Chega-se então ao chip multi órgãos, dispositivo que combina várias células interconectadas, permitindo a simulação de reações simultâneas, como no corpo real.

Reações entre órgãos

“Essa abordagem representa uma maneira mais avançada de imitar a complexidade do corpo humano e estudar doenças e terapias de maneira mais realista. Os chips multi órgãos podem ser usados para estudar interações entre órgãos em condições normais e patológicas, permitindo uma melhor compreensão da fisiologia do corpo humano e da progressão de doenças. Por exemplo, um chip que combine o fígado e o intestino pode ser usado para estudar como a função hepática pode ser afetada pela microbiota intestinal (as bactérias, vírus, fungos e outros microrganismos unicelulares que habitam o corpo humano) e mostrar como os medicamentos afetam esses dois órgãos em conjunto.”

Sobre a chance de a mudança nos testes laboratoriais em animais acontecer de forma gradual e completa ou então a medicina chegar a uma mescla entre alternativas com órgãos em chip, bioengenharia e modelos de computador utilizadas em conjunto com testes em animais, a opinão de Gomes Leão agrada aos ativistas contra o uso das cobaias. “Acredito que os animais serão subsituídos por completo, talvez nas próximas décadas. É só uma questão de tempo para a adaptação da ciência e a implementação ampla dessas alternativas já estabelecidas.”

“Acredito que animais serão substituídos, talvez em décadas”
Paulo Gomes Leão, cientista (Crédito:Divulgação)

José Roberto Cardoso, ex-diretor da Escola Politécnica da USP e responsável por projeto de desenvolvimento de Dispositivos de Asssistência Ventricular, na área de criação de órgãos artificiais por bioengenharia, não compartilha completamente dessa visão. “Os testes realizados em animais são mandatórios antes de utilizarmos medicamentos em seres humanos. Exige um código de ética que precisa ser cumprido. Antes de fazer os testes em animais, é preciso usar testes com instrumentos sofisticados e condições controladas. Fazer simulação de um enfarte, de um rompimento. Uma vez que isso tudo funcionouem ambiente de laboratório, passamos para teste em animais vivos, submetido a um código de ética.” Para Cardoso, “o animal não é alternativa que possa ser eliminada, é necessária e precisa ser cumprida”.

Contudo, o congresso dos EUA aprovou a Lei de Modernização da FDA sancionada no final do ano passado, que permite aos fabricantes de medicamentos coletarem dados iniciais de segurança e eficácia usando novas ferramentas de alta tecnologia, como órgãos de bioengenharia, órgãos em chips e até mesmo modelos de computador, em vez de animais vivos. “Desta forma está se iniciando uma busca maior e até prioritária para a alternativa da utilização de animais vivos em testes”, afirma Cardoso. “Eu creio que no futuro não muito próximo isso talvez venha a acontecer.”

* Estagiário sob supervisão de Thales de Menezes