Muito se fala do físico privilegiadíssimo de Pelé, que por longos anos se manteve nem padrões próximos do auge de sua carreira — 1,72m para os 67 kg aos 30 anos na Copa do México 1970 –, tomados como ideais para um jogador de futebol da época. E não era apenas o físico, mas seus parâmetros de velocidade, resistência, impulsão, explosão, arranque, potência (força mais velocidade), qualidades técnicas que nunca chegaram a ser devidamente medidas, compiladas e computadas para estudos que pudessem explicar, ao menos geneticamente, de onde emergiu um fenômeno que se tornaria o “Atleta do Século”, também conhecido por sua visão de jogo, leitura tática, criatividade e inteligência. Que explicasse sua genialidade, em resumo.

O fisiologista Turibio Leite de Barros Neto, um dos pioneiros no trabalho científico com times de clubes de futebol, não apenas esteve várias vezes com “o atleta perfeito”, como define, como também recebeu a resposta a uma de suas curiosidades. “Perguntei a ele qual considerava sua maior qualidade, como jogador, mas além da parte física, técnica e tática. E ele me disse que era sua visão periférica, que sempre considerou excepcional”, conta Turíbio. Segundo Pelé, seu raio visual era mais amplo que o normal e ele sabia disso porque havia passado por avaliação desse tipo com especialistas.

“Ele me disse que era o que lhe permitia tomar decisões antecipadas, com relação aos adversários. E dá para perceber, por exemplo, nos 3 a 1 contra o Uruguai da Copa de 1970, quando um zagueiro vem correndo por trás dele, para dar um toco, mas o Pelé se antecipa com uma cotovelada no rosto do adversário, com a amplitude, na corrida, do movimento da abertura de braços. E o juiz ainda deu falta do uruguaio, que cai com a mão na cabeça. Ou, na mesma Copa, com aquela esticada de bola de lado para o Carlos Alberto, que vinha na corrida e nem a câmera da tevê captava, para fechar os 4 a 1 na final sobre a Itália.”

Essas são evidências claras de mais uma qualidade do atleta acima da média, diz Turíbio. “Ele tinha o biotipo perfeito para jogador de futebol. Não muito alto, com seu 1,70 m, mas uma impulsão absurda. Com isso ganhava pelo menos uns dez centímetros ao saltar, enfrentando jogadores muito mais altos. Tem uma foto em que ele está quase sentado na cabeça de um adversário”, comenta o fisiologista. “Além disso, se percebe uma velocidade bem maior que dos outros, agilidade excepcional. Até quando jogou no gol foi bem. Isso para nem falarmos na técnica e na tranqüilidade que mostrava, pela autoconfiança. Por saber que ia entrar e ia resolver.”

Turíbio segue, observando que Pelé não tinha câimbras, não pedia para sair por estar cansado, e não se lesionava. “Graves mesmo, foram aquelas duas, das Copas de 1962, 1966, que me lembre. Pelo número de jogos, pouquíssimas, aliás, se comparado a jogadores da mesma época.” É uma questão de genética, segue Turíbio. “O Pelé parece de outro planeta. Merecia um estudo genético, que me espanta por ainda não ter sido feito, que ninguém da área tenha pensado. Hoje já se sabe que existem genes que determinam habilidades físicas e intelectuais do desempenho humano. O material genético do Pelé poderia ajudar para evoluirmos muito em respostas da genética, quanto a expressões responsáveis por alguns aspectos.”

Como preparador físico do São Paulo F.C., João Paulo Medina enfrentou o Santos de Pelé, depois se tornou técnico e hoje é consultor de futebol. Ao lado de outros pesquisadores, gravou um vídeo com Pelé, por volta de 2007, para um estudo sobre o jogador ideal. “Na verdade, não são apenas esses aspectos todos, físico, técnica, genética, que fizeram de Pelé o que foi. Queríamos ir além. Queríamos desvendar a genialidade dele. O que fazia dele um gênio.”

Autoexigência e perseverança

Medina conta que o próprio Pelé disse: “O que fez do Edson o Pelé foi, em primeiro lugar, Deus; depois, meu pai, Dondinho, meu modelo. E a perseverança.” Para o professor da Universidade do Futebol, Pelé tinha uma motivação intrínseca e se cobrava muito. “Repetia e repetia movimentos e, autoconfiante, queria a todo momento se superar. Ele comentou que, com 14 anos, não queria jogar com jovens da idade dele, porque não se sentia desafiado. Por isso, jogava com adultos. Queria sempre mais. Quando estudamos grandes talentos como ele, olhamos não apenas para o futebol que jogam. Ele queria se superar permanentemente. Tem como característica a autoexigência, alta e incansável. Esse é o principal ingrediente do talento.”

Além de conseguir equilibrar todas as suas qualidades, destaca Medina, Pelé tinha inteligência acima da média “para ler o jogo e tomar decisões a cada momento”. Não se deve tentar entender o atleta apenas pelos lados físico, técnico, tático ou mental, isoladamente, “como se fazia no século passado”, como concluiu o professor. “Temos de ver como tudo isso se interrelaciona para se chegar a um resultado final ótimo. Hoje, a complexidade é muito maior. A ciência está desvendando tudo isso, sem limitar conclusões na tomada de decisões. Esse é o atleta do século 21. O Pelé viveu como atleta do século 20, mas já era do século 21.”