Neste 24 de fevereiro faz um ano que a Rússia invadiu a Ucrânia. E o mundo não é mais o mesmo. Além dos milhares de mortos dos dois lados, 10 milhões de ucranianos deixaram o país em busca de refúgio, houve quebra de cadeias produtivas, crise energética e alta no custo de vida por todo o planeta. E essas foram apenas as consequências mais visíveis no fim de um período de relativa prosperidade no pós-Guerra Fria, com a globalização se revertendo em nacionalismos extremos, agravados pela pandemia. Mas o cenário aponta para mudanças muito mais profundas e também acentuadas pela guerra. O mundo estaria novamente a caminho de se partir em dois grandes blocos, capitaneados por EUA e China, em uma “Guerra Fria 2.0”.

Enquanto isso, os conflitos se acirram no território ucraniano e há o temor do que Vladimir Putin possa ter planejado marcar o primeiro aniversário do conflito, na próxima sexta-feira, com uma medida de força espetacular. Mas há poucas alternativas viáveis na frente militar. A guerra passou por momentos distintos. Fracassaram negociações prévias, em que o presidente francês Emmanuel Macron, o premiê alemão Olaf Scholz e o presidente turco Recep Erdogan se empenharam, para evitar o confronto. Putin rechaçava a tentativa da entrada da Ucrânia na União Europeia, como forma de “defesa existencial” de seu país, e o presidente Joe Biden, dos EUA, reafirmava o apoio que se mostrou fundamental para os ucranianos resistirem à invasão. Esse suporte se estendeu pelos aliados europeus, principalmente em forma de bilhões em armamentos.

NO ATAQUE Mísseis lançados pelos ucranianos em Marinka, nos arredores de Donetsk, respondem a ataque russo (Crédito:Marko Djurica)

Nos primeiros três meses — a primeira fase dessa guerra —, houve erros de avaliação de todos os lados, segundo os analistas, e as sanções econômicas funcionaram apenas parcialmente, porque negociações comerciais com os russos continuaram, ainda que por vias alternativas. Na segunda fase, em torno de maio a setembro, as sanções endureceram, mas também o troco da Rússia. O que se viu foram avanços e recuos dos dois lados, com algumas aberturas pontuais, como o corredor para exportação de grãos ucranianos pelo mar Negro, em acordo costurado por Turquia e ONU.

Neste momento, de acordo com Roberto Uebel, da ESPM-Porto Alegre, a situação caminha para a “normalização da guerra” — termo usado pelos analistas, em casos como da Síria, que vive em conflito há dez anos; o Iêmen, há 20, e a Somália, há três décadas. Os primeiros indícios desse “aprender a conviver com a guerra” são as saídas do bunker pelo presidente ucraniano Volodymyr Zelensky, para encontros nos EUA e na Europa, com Biden, Macron, Scholz e o premiê britânico Rishi Sunak.

Além da complexa gestão para integrar refugiados, principalmente por parte dos vizinhos da Ucrânia, neste ano de guerra devem ser destacados o acirramento da xenofobia e as “inovações tecnológicas” até fora do aspecto bélico, como o monitoramento de migrações populacionais por meio de redes sociais, que passaram a ser ferramentas importantes para analistas.

Por trás da guerra

Para Leonardo Trevisan, especialista em história econômica e ciência política e também da ESPM, a guerra na Ucrânia é a face mais evidente de mudanças geopolíticas e geoeconômicas profundas, com EUA e China de protagonistas. Os dois países romperam a aliança econômica por volta de 2013, com a ascensão de Xi Jinping, e passaram a se ver como competidores. Em 2020/2021, com 26 acordos bilaterais assinados entre China e países europeus, estes contavam com gás russo a preço baixo, para se desenvolverem como bloco. Os EUA entraram em alerta. E a Ucrânia surgiu como uma oportunidade, na visão do professor da ESPM, para Joe Biden retomar laços com a Europa e ainda se movimentar para juntar o Atlântico ao Indo-Pacífico, com alianças de Reino Unido, Austrália e Japão, em contraponto à China.

BAIXA Soldado russo morto ao lado de tanque destruído logo no início da invasão, perto de Kharkiv (Crédito:SERGEY BOBOK)

Roberto Goulart Menezes, do Instituto de Relações Internacionais da UnB, destaca que o fim da guerra dependeria de um recuo da Rússia — que, perto de somar 20% do território ucraniano “ao arrepio do direito internacional”, levaria a um custo de imagem muito alto para Putin, dentro de seu país. O professor também lembra da resistência às sanções econômicas contra a Rússia, da parte de Brasil, Índia, Turquia e Oriente Médio, e da dependência energética que a Europa ainda tem da Rússia. Por todos esses motivos e em meio às mudanças geopolíticas mundiais, nem os EUA pressionam aliados pelo fim da guerra “por procuração”, nem a China pressiona a Rússia. Trevisan espera um segundo ano de guerra “assustador, muito dramático do ponto de vista militar”, porque propostas de mediação não encontram eco. O cessar-fogo parece distante.