Na última quarta-feira, dia 5, a Constituição Brasileira completou 28 anos de vigência – e lá se vai no tempo, portanto, esse dia histórico de outubro de 1988 quando o deputado federal Ulysses Guimarães, presidindo os trabalhos da Assembleia Nacional Constituinte, emocionou-se e emocionou toda a Nação ao proclamar que estava “promulgada a Constituição do Brasil”. Sua voz firme e anasalada, mais anasalada ainda naquele instante porque inevitavelmente embargada, fazia de Ulysses a mais fiel tradução do próprio Ulysses: um homem que concebia a política como a “arte de viver e não mera busca do poder” (que é “até afrodisíaco se servir ao povo”), um homem que sempre se colocou na política como servidor público, um homem que sempre serviu a um Brasil que lhe conferiu 11 mandatos parlamentares consecutivos. Naquele 5 de outubro, tanta festa pela consolidação constitucional do Estado de Direito, que à exceção de sua esposa, dona Mora, ninguém lembrou que no dia seguinte era o seu aniversário de 72 anos.

“O silêncio e o olhar de Ulysses pesavam mais do que a pata de
um elefante, tal era a liderança e o respeito de que gozava”

Fernando Henrique Cardoso, ex-presidente do Brasil

O que é uma data íntima, particular, diante de uma data republicana e democrática para um País que acabara de sair da noite da ditadura militar? Para Ulysses Guimarães, o aniversário era fato menor. Maior, bem maior, é, no entanto, lembrarmos agora que na quinta-feira 6 fez-se o centenário de seu nascimento. E, também é bom lembrarmos, até porque não há hoje no Brasil homens públicos que se coloquem ao lado do povo como ele se colocou, não como estratégia pré-eleitoral mas porque sua alma assim o cobrava. É impensável um Ulysses Silveira Guimarães, nascido na cidade paulista de Rio Claro e desde jovem enfronhado nas questões nacionais, em meio à maioria dos parlamentares da atualidade. Não julguem, entretanto, que ele iria desistir. Ia é peitar um a um: ou todos mudavam de conduta ou ficaria só ele legislando com sua moral e sua ética. Correr, jamais. A coragem e a luta também tecem o temperamento de quem nasce em libra. Idem a língua afiada. Em 1992, quando o ex-presidente Fernando Collor o chamou de “desequilibrado e senil”, Ulysses o fez engolir letra por letra: “Sou velho mas não sou velhaco”. Em plena ditadura, quando a polícia o encurralou em Salvador, palavras viraram canhão: “Respeitem o líder da oposição! Soldados da minha pátria, baioneta não é voto e cachorro não é urna”. Os fuzis foram virados para o chão, cada militar ordenou que o pastor alemão trazido na coleira parasse de latir e deitasse.

Momentos históricos
Quatro imagens que marcaram o destino de Ulysses Guimarães 

Vocação para o diálogo

Se o arrojo físico de Ulysses foi uma das marcas de seu temperamento, o dom do diálogo e da conciliação o temperou e lhe deu a dimensão de estadista – não é por acaso que ISTOÉ o expõe nessas fotos, em diversas situações e com políticos de diferentes ideologias. Ele acreditava na interlocução, mesmo nos momentos mais duros, como, por exemplo, quando comandava o Movimento Democrático Brasileiro (MDB), partido que criou e que se opunha a Arena no bipartidarismo do regime de exceção: “Não queremos a ruptura, não optamos pela luta armada. Acreditamos no diálogo para servir ao povo do Brasil” – o “il” de Brasil de Ulysses era sempre marcante, com a ponta da língua meio que encostando no céu da boa. Ulysses tinha o tempo certo de tudo, tempo de brigar, tempo de dialogar. Não se inflava com aplausos nem murchava com vaias. Tinha o tempo que o senador Pinheiro Machado, citado por Érico Veríssimo no monumental “Solo de clarineta”, nos legou em 1915: “Nunca vá tão depressa que possam pensar que você tem medo, nem vá tão devagar que possa parecer provocação”. Eis o jogo e cintura de Ulysses.

Líder absoluto na luta pela anistia política (em 1979) e consagrado pelo povo no comando das Diretas Já (que lhe valeu em 1983 o título de “O senhor Diretas”), ele lançou pelo PMDB a sua candidatura à Presidência do Brasil em 1989. Perdeu, ficou em sétimo lugar. Nenhum abalo, partiu então para a sua última legislatura. Em 12 de outubro de 1992, voando em meio à neblina, o helicóptero que o transportava (juntamente com dona Mora, o empresário Severo Gomes e sua mulher, Anna Maria Henriqueta) caiu no mar. Seu corpo nunca foi encontrado, e legistas acham que um fêmur, nada além de um fêmur daquele que foi um dos maiores parlamentares brasileiros, o mar devolveu à areia. Mas a trajetória do homem que virou lenda, essa permanece em terra firme, e bom seria ser evocada por políticos atuais. Ulysses nasceu há um século em outubro, a Constituição é de outubro, Ulysses morreu em outubro. A partir desse outubro de 2016, portanto, muitos políticos deveriam segui-lo em pelo menos três de seus legados: moral, ética e muita vergonha na cara.

Foto: Luciano Andrade/CPDoc; Orlando Brito/Agência O Globo; Antonio Carlos Piccino/Agência O Globo; Luiz Antonio/Agência O Globo; Silvio Correa/Agência O Globo;