Documentos apontam que novas políticas linha-dura da UE podem levar à interrupção dos repasses à África caso países não impeçam travessia de migrantes rumo à Europa. Críticos dizem que postura é xoercitiva e neocolonial.A Comissão Europeia, principal órgão executivo da União Europeia (UE), quer condicionar a ajuda financeira do bloco para o desenvolvimento da África ao alinhamento de países do continente com as políticas europeias de migração – a depender de como cada país controla suas fronteiras e coopera com a "devolução" pela Europa de imigrantes indesejados.
É o que sugerem documentos internos da UE citados pelo jornal britânico Financial Times e a agência de notícias Reuters, que estipulam que países que não cumpram com acordos de deportação poderão sofrer cortes nos repasses da UE.
A diretriz foi criticada por entidades humanitárias, como a organização de combate à pobreza Oxfam, que acusou a UE de "distorcer as metas de desenvolvimento" do bloco e responder a problemas estruturais complexos com "reparos políticos de curto prazo".
A mudança de rumo da UE vem em meio a um clamor crescente dentro da Europa pelo combate da imigração irregular nas rotas do Mar Mediterrâneo e do Saara. A pressão é especialmente intensa em países como Alemanha, Itália e Grécia, onde a rejeição a refugiados tem aumentado.
"UE tem medo da 'africanização' da Europa"
Para especialistas e pesquisadores africanos, a nova postura da UE na cooperação internacional é coercitiva e neocolonial, e tende a minar tanto a soberania das nações africanas quanto a confiança que elas depositam no bloco.
"Impeça a sua gente de migrar ou fique sem ajuda – para mim, soa como uma mensagem de coerção, e não de cooperação", afirma à DW Maria Ayuk, PhD que pesquisa sobre paz e segurança na Universidade Otto von Guericke, de Magdeburg, na Alemanha. "Isso reduz as nações africanas a guardas de fronteira, em vez de parceiros equiparados rumo ao desenvolvimento."
Ayuk critica a UE por, a seu ver, tratar a migração como moeda de troca na relação com países africanos. "A UE está securitizando a migração, e ao longo dos anos a tem politizado", aponta. "O que a UE está fazendo está forçando africanos a manter as pessoas na África, porque eles [UE] têm medo da 'africanização' da Europa."
Por que africanos migram
Enquanto formuladores de políticas públicas na Europa frequentemente enfatizam o que chamam de "fatores de atração" para migrantes – como trabalho, segurança pública e um Estado de bem-estar social forte –, analistas africanos pontuam que, primeiro, é preciso prestar mais atenção nas condições que levam as pessoas a migrar.
"As pessoas certamente sentirão a necessidade de ir embora", afirma Fidel Amakye Owusu, consultor de segurança e geopolítica baseado em Gana.
Entre os principais fatores que alimentam a migração, ele cita "problemas socioeconômicos, lacunas no desenvolvimento rural-urbano, pobreza indigna, conflitos e desemprego".
O analista de mídia e assuntos globais Paul Ejime concorda. Para ele, as pessoas migram porque o ambiente em que elas vivem é hostil. A pobreza, as dificuldades da vida cotidiana e a instabilidade, afirma, estão levando africanos a arriscarem suas vidas para tentar sobreviver.
"No passado, durante a escravidão, africanos foram enviados à força ao exterior. Hoje, são os jovens que fogem, porque o ambiente não é propício", afirma. "Fechar a porta ou construir muros não é a solução."
Ayuk, da Universidade de Magdeburg, ressalta que governos africanos são parte do problema: "Temos vários líderes autocráticos que querem permanecer para sempre no poder. Essas são as questões centrais das quais precisamos tratar."
Especialistas concordam que as práticas comerciais da Europa e intervenções estrangeiras contribuíram diretamente para a instabilidade e o subdesenvolvimento na África. E essas condições, afirmam eles, impulsionam a migração.
"As políticas comerciais extrativistas da UE, exportações de armas e intervenções seletivas […] contribuíram para a instabilidade e a insegurança; e, claro, para o subdesenvolvimento, alimentando a mesma migração que [a UE] quer evitar", observa Ayuk.
Ejime acrescenta que isso se reflete também no setor de saúde. "A maior parte dos profissionais de saúde nesses países está na Europa e nos Estados Unidos. O setor de saúde é mal financiado, tem poucos recursos, e a força de trabalho que eles têm está indo para o exterior", diz.
O problema é exacerbado, segundo Ejime, pelo que ele chama de padrões duplos da Europa: "Eles podem abrir suas portas para pessoas da Ucrânia. Mas quando se trata de africanos, eles endurecem as regras."
Cooperação internacional instrumentalizada para fins políticos
A tática da UE de condicionar a cooperação internacional para o desenvolvimento ao cumprimento de metas de migração também é percebida como exploratória por analistas africanos.
"Sim, acho que a UE está tentando condicionar a ajuda ao controle de migração", afirma Ayuk. "Ela a instrumentaliza."
Com isso, a cooperação internacional passa a ser guiada por interesses próprios, em vez de solidariedade, na visão da pesquisadora – uma abordagem que, nas palavras dela, "mina a confiança e o respeito mútuo" entre a Europa e a África.
"Eles [a UE] sempre fizeram isso", critica Ejime. "Quando querem te dar apoio, às vezes eles vêm com condicionalidades."
A responsabilidade da classe política africana
Embora os três especialistas africanos critiquem a mudança na política de apoio da UE, eles também veem os governos domésticos como responsáveis pela crise e pelo endurecimento da política europeia de migração.
"A África é o problema, porque não tem agência internacional", afirma Ayuk. "Aqueles que deveriam representar a África não representam os interesses coletivos da África, mas sim os interesses individuais das elites."
Alguns analistas estão apelando a líderes africanos para que redefinam os termos das negociações com a UE.
Para Ejime, contudo, essa não é uma demanda realista. "Infelizmente, eles [políticos africanos] estão negociando de uma posição de fraqueza. Eles estão fracos. As economias estão fracas. Politicamente, eles não são sequer populares em seus próprios países, e alguns são corruptos."
Que opções a África tem?
A África não é impotente, pontuam os especialistas, mas precisa se mobilizar politicamente se quiser ter alguma capacidade de agência.
"Se trabalhadores qualificados vão para o exterior, talvez pudesse haver um tipo de acordo ou contrato para enviar dinheiro de volta [aos países de origem] para desenvolver os sistemas de saúde e educação", sugere Ejime.
Ayuk vê potencial nos recursos naturais e blocos regionais do continente. "Mas a África precisa de uma liderança unificada e de uma mudança, passando da dependência para um desenvolvimento definido sob seus próprios termos", pondera.
Já Owusu observa que é preciso investir em tecnologia para garantir o controle efetivo das fronteiras nacionais. "Muitos países africanos não têm tecnologia para patrulhar todas as suas fronteiras. É muito difícil administrá-las e controlar o fluxo de pessoas."
Mas ele também alerta que a abordagem da UE pode ser contraproducente e alienante, especialmente para os países africanos que já estão fazendo esforços genuínos de controle de fronteiras e migração. Como consequência, o continente pode acabar se alinhando a outros parceiros, como o Brics ou outras iniciativas do Sul Global.
Ayuk e Ejime compartilham dessa avaliação, e acham que a postura da UE põe em risco as relações com o continente e não trata dos problemas que levam as pessoas a fugir para a Europa.
"A migração deve ser administrada, sim, mas não securitizada ou politizada. Precisamos de relações recíprocas, baseadas em respeito, equidade e justiça", afirma Ayuk.
Owusu concorda: "A Europa precisa parar de ver a África como problema e começar a enxergá-la como parceira."
"A África é mal administrada. E foi empobrecida por más lideranças", arremata Ejime.