Parceiro é importante do ponto de vista geográfico e do poderio militar, mas costuma causar dor de cabeça. Fim da era Erdogan poderia trazer alívio aos demais membros da Otan.A Turquia ingressou na Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) em 1952, em plena Guerra Fria, num passo a favor do Ocidente e contra a União Soviética.
Era, então, uma decisão a ser festejada pelo Ocidente, que passava a ter um aliado de grande importância geopolítica, com uma fronteira com o mundo comunista.
Mas, mais de 70 anos depois, muitos se perguntam se a presença da Turquia na aliança ainda faz sentido ou se realmente traz mais vantagens do que desvantagens para os países ocidentais.
Porque, se é inquestionavelmente importante do ponto de vista geográfico, com a localização entre a Europa e a Ásia, a Turquia também causa frequentemente problemas para os demais aliados.
Objeções à Suécia e à Finlândia
Isso ficou novamente claro quando a Finlândia e a Suécia apresentaram candidaturas conjuntas para ingresso na Otan, em maio de 2022, numa reação à invasão da Ucrânia pela Rússia.
Depois disso, o processo se arrastou. O presidente da Turquia, Recep Tayyip Erdogan, bloqueou o ingresso dos dois países, condicionando a sua aprovação a uma série de exigências, a maioria delas relacionadas ao Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK), que Ancara considera uma organização terrorista.
No fim de março de 2023, a Turquia finalmente cedeu e deu seu aval para a adesão da Finlândia. Mas a entrada da Suécia continua pendente.
A União Europeia e os Estados Unidos também consideram o PKK, que oficialmente descartou as pretensões separatistas iniciais e hoje luta por mais autonomia política para territórios de maioria curda dentro da Turquia, uma organização terrorista.
Mas a Turquia acusa a Suécia, que, como a Finlândia, é um país-membro da União Europeia, de ter uma posição menos rígida, afirmando que o país serve de refúgio para terroristas, em referência a membros do PKK e também a outros adversários políticos, e exige que estes sejam extraditados.
Para complicar ainda mais a situação, o governo turco ficou furioso quando um extremista de direita sueco queimou uma cópia do Alcorão diante da embaixada da Turquia em Estocolmo, no início de 2023.
Longa lista de atritos e problemas
Essa não foi a primeira vez que o presidente da Turquia desafiou o consenso dentro da Otan. Em 2009, ele bloqueou a indicação do então primeiro-ministro da Dinamarca, Anders Fogh Rasmussen, para o comando da aliança. Foi necessária uma conversa privada entre o então presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, e o líder turco para levantar o veto.
Em 2010, Turquia e Israel romperam relações, e Erdogan bloqueou por seis anos uma parceria mais aprofundada entre a Otan e o Estado judeu.
Em 2020, Turquia e Grécia, dois membros da Otan, se envolveram numa disputa sobre direitos de exploração de petróleo e gás no Mar Mediterrâneo. A França, outro membro da Otan, apoiou a Grécia, enviando navios e aeronaves para a região.
A lista de atritos é longa. Embaixadores afirmam que, não raro, a Turquia é o único país da aliança militar com uma posição contrária à dos demais.
Turquia, porém, é importante
Tudo seria mais simples se a Turquia não fosse um membro de peso da Otan. A localização dela, ao sul da Rússia, com acesso ao Mar Negro, fronteiras com a Síria, o Iraque e o Irã, e a longa costa mediterrânea contribuem para a importância dela para a aliança militar.
A Turquia também tem o segundo maior exército da Otan e dispõe de uma indústria armamentista desenvolvida. O país ainda abriga uma base aérea dos Estados Unidos, na qual armas nucleares estão estacionadas.
Especialistas argumentam que seria muito pior ter a Turquia fora da Otan do que dentro, principalmente se ela se sentir chutada para fora da aliança e se voltar para a Rússia e a China.
E a invasão da Ucrânia pela Rússia sublinhou mais uma vez a importância da segurança na fronteira leste da Otan, bem como a importância da capacidade de mediação diplomática da Turquia – Erdogan costurou um acordo para exportação de grãos ucranianos com Vladimir Putin.
A atual situação, após a invasão da Ucrânia pela Rússia, só reforçou o interesse do Ocidente de manter a Turquia na Otan, assim como o de mantê-la militarmente forte. E a recíproca também é verdadeira, pelo mesmo motivo.
Nacionalista e autoritário
Foi sobretudo com Erdogan, inicialmente como primeiro-ministro e depois como presidente, que a Turquia foi se tornando um problema para seus aliados ocidentais.
Especialistas afirmam que Erdogan tem afastado a Turquia do secularismo introduzido pelo lendário líder Kemal Ataturk, o fundador do moderno Estado turco.
Erdogan tem adotado um estilo autoritário, populista e nacionalista, pelo qual já foi chamado de "o primeiro sultão da Turquia moderna". Essa tendência se fortaleceu ainda mais depois do fracassado golpe de Estado de 2016.
Mas analistas afirmam que o presidente turco colocou a si mesmo num impasse no seu lance mais audacioso: contrariar a Otan e adquirir armamento da Rússia.
Em 2017, Erdogan acertou com o presidente da Rússia, Vladimir Putin, a aquisição de um sistema de mísseis antiaéreos S-400, apesar das fortes objeções do governo dos Estados Unidos ao uso desse sistema dentro da Otan.
O governo americano argumentou que o uso do sistema S-400 pela Turquia permitiria aos russos obterem informações sobre o caça F-35, em especial a sua capacidade furtiva, ou seja, a capacidade de um caça de não ser corretamente detectado pelos radares. O S-400 foi, afinal, criado para derrubar jatos como o F-35.
O F-35 é um dos caças mais modernos do mundo. Ele é um projeto da Otan, capitaneado pelos Estados Unidos e com forte participação da Turquia – ao menos inicialmente.
Porque, depois de Erdogan simplesmente ignorar os apelos do governo americano, este retirou, após a efetivação da compra do sistema antiaéreo russo, em 2019, a Turquia do programa conjunto de desenvolvimento do F-35 e proibiu que os caças fossem vendidos ao país.
Além disso, o Congresso dos EUA impôs sanções à Turquia, e congressistas americanos declararam que o país não podia mais ser visto como um aliado.
Sem acesso ao F-35, a Turquia tenta agora adquirir 40 caças F-16 dos Estados Unidos. O governo de Joe Biden apoia o negócio, que é bilionário, mas líderes congressistas dos dois partidos se mostram contra e apontam para a imprevisibilidade de Erdogan, as violações de direitos humanos e o sistema de governo cada vez mais autoritário na Turquia.
É possível, portanto, que os Estados Unidos consigam concessões da Turquia para a venda dos jatos – o que pode justamente incluir a aceitação dos ingresso da Finlândia e da Suécia na Otan, bem como uma negativa a novas ações militares turcas contra os curdos no norte da Síria – os curdos são aliados dos americanos na luta contra o grupo terrorista "Estado Islâmico".
Ambos os lados negam que haja uma associação entre a venda dos jatos F-16 e o ingresso da Suécia e da Finlândia na Otan, mas especialistas americanos dizem que é exatamente isso o que deverá acontecer.
Erdogan também tem críticas
A Turquia também tem críticas à Otan, em especial pelo que considera falta de reciprocidade, acusando a aliança militar de não levar a sério os temores de segurança do país apesar de décadas de lealdade.
Washington levantou, em maio de 2022, sanções econômicas à região administrativa autônoma curda no norte da Síria, na prática permitindo a ela manter relações comerciais com o exterior.
Essa região controlada pelos curdos na Síria é um pesadelo para Erdogan, que a vê como uma ameaça à integridade territorial da Turquia. O apoio americano aos combatentes curdos na Síria é um dos principais motivos de irritação do presidente turco com os Estados Unidos.
Além disso, os Estados Unidos abrigam o líder religioso Fethullah Gülen, que Erdogan acusa de planejar o fracassado golpe de Estado de 2016. Membros do governo turco já acusaram Washington de estar por trás da tentativa de golpe.
Erdogan seguirá no poder?
A Otan sem a Turquia é um devaneio. A Turquia é um ator fundamental na guerra na Síria e controla a entrada de navios no Mar Negro a partir do Mediterrâneo, para citar apenas dois pontos.
Da mesma foram, a Turquia tem interesse no poder de defesa oferecido pela participação na Otan – pelas regras da aliança militar, quem ataca um membro, gera uma resposta de todos.
Para o Ocidente, é mais fácil pensar numa Turquia sem Erdogan. E isso pode mesmo vir a acontecer. A Turquia terá eleições presidencial e parlamentar em 14 de maio de 2023, e uma aliança de seis partidos, que vão da direita à esquerda, se apresentou para tentar derrotar Erdogan.
Pesquisas eleitorais indicam que a disputa é acirrada – e Erdogan, cujo governo enfrenta problemas internos, sobretudo uma elevada inflação, tem usado o não ao pedido de adesão de Suécia e Finlândia como instrumento de campanha eleitoral.
Passada a campanha, a situação poderá ser outra, seja por Erdogan não estar mais no poder, seja por ele não precisar mais desviar a atenção dos eleitores turcos.
Seja como for, dentro da Otan espera-se que a Turquia, depois do aval à Finlândia, finalmente dê luz verde à Suécia até a próxima cúpula da aliança, na Lituânia, em meados de julho de 2023.