Dizimada e vencida pela colonização portuguesa, a cultura indígena foi — e é — homenageada em ocasiões pontuais. José de Alencar publicou o romance “O Guarani” em 1857; Tarsila do Amaral pintou a tela “Abaporu” em 1928. Em 1935, a Universidade de São Paulo (USP), abriu uma cadeira de Tupi no curso de linguística. Mas foi apenas em 1954 que o governo federal determinou a inclusão do estudo da língua em todas as faculdades. Até agora não se tinha notícias de registro escrito indígena da história do Brasil: praticamente todos os relatos vêm dos portugueses. Uma tradução da correspondência trocada em tupi antigo por personagens indígenas conhecidos — Pedro Poti e Felipe Camarão — traz, pela primeira vez, a versão dos vencidos de um período histórico fundamental.

Em 1885, as cartas foram localizadas na Real Biblioteca de Haia, na Holanda, e trazidas ao Brasil pelo pesquisador José Higyno Duarte Pereira. “Ele as colocou nas mãos do engenheiro e historiador Theodoro Sampaio, que não conseguiu decifrá-las”, conta o homem que finalmente realizou essa façanha 136 anos depois: o paulista Eduardo Navarro, professor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP.

Navarro levou vinte anos para concluir o trabalho. Chegou a morar no último reduto potiguar, na Praia da Traição, na Paraíba. Antes, os domínios potiguares se estendiam até o Rio Grande do Norte e por isso, quem nasce no estado é chamado “potiguar” até hoje. O mergulho no universo indígena rendeu outras obras: em 1998, publicou “Método Moderno de Tupi Antigo” e, em 2013, o primeiro “Dicionário de Tupi Antigo”.

“Foi difícil porque não havia nenhum dicionário, apenas manuscritos datados de 1621. Tudo foi escrito pelos portugueses. Trata-se de uma língua abandonada”, diz Navarro. Outro ponto importante é que existe uma grande diferença entre um nativo escrever na própria língua e um estrangeiro usá-la. “O Tupi era uma língua falada, não escrita”, diz o professor de linguística Thomas Finbow, da FFLCH-USP. Os escritos de José de Anchieta como os de Padre Antônio Vieira têm uma linguagem muito formal. Já nas cartas traduzidas, o tom é coloquial. “Também percebemos que os autores sofreram influência da estrutura gramatical portuguesa, pois há uma ordem na oração, com sujeito, seguido de verbo e predicado, não comum ao Tupi”, diz.

O material traduzido é composto por seis cartas, escritas durante a Insurreição Pernambucana (1645-1654). Três delas são de autoria do índio potiguar Felipe Camarão ao primo Pedro Poti, que tinha um irmão, Diogo da Costa, que lhe escreveu as outras três. As respostas de Poti estão perdidas. A batalha foi uma ação portuguesa para retomar as terras do domínio holandês, que já perdurava 24 anos e se estendia pela costa brasileira de Pernambuco ao Maranhão.

FAMÍLIA Cartas entre os primos Pedro Poti e Felipe Camarão: lados opostos no conflito com os holandeses (Crédito:Divulgação)

Convertido ao protestantismo, Poti estava do lado dos holandeses. O primo Camarão, criado e batizado pelos jesuítas e, portanto, católico, estava do lado oposto. Camarão lamentava que os potiguares estivessem se afastando das tradições. Pede para o primo deixar os campos holandeses e voltar para casa, com o objetivo de viverem unidos e dentro dos costumes. “Ele expressa uma insatisfação com a vida que o índio estava sujeito na época”, explica Navarro. Diogo da Costa, além de tentar trazer o irmão para o lado dos portugueses, também teve a missão de lhe entregar as cartas.

Em breve haverá uma exposição do material no Museu Goeldi, no Pará. Da biblioteca que tem em casa, na histórica Vila de Paranapiacaba, em São Paulo, Navarro prepara as traduções para serem publicadas em livro. Encerrado isso, a próxima missão será no Egito — mas o teor dessa pesquisa ainda é segredo.