Quase 80 mil pessoas aguardam um órgão para transplante, atualmente, no Brasil. Só até a metade de 2025, 1.863 perderam a vida, por não conseguirem receber um órgão a tempo. Os dados são do Hospital de Clínicas da Universidade Estadual de Campinas (HC-Unicamp), de São Paulo. A fila poderia ser menor, com mais desfechos positivos, se houvesse uma maior conscientização sobre a importância de ser doador – e informar aos familiares, ainda em vida, sobre esse desejo. Segundo o HC, 45% das famílias não autorizam a retirada de órgãos para doação.
Ninguém gosta de falar ou pensar sobre a própria morte e, talvez por isso, ainda haja resistência em documentar o desejo de doar órgãos, caso seja possível. Ao se tornar doadora, uma única pessoa pode ajudar a salvar até dez vidas. Mesmo assim, o assunto é cercado de dúvidas e alguns tabus. Para esclarecer as dúvidas mais comuns sobre o tema, conversamos com a médica Ilka Boin, membro do Conselho Consultivo da Associação Brasileira de Transplante de Órgãos (ABTO) e Chefe do Transplante Hepático da Unicamp. Confira as respostas.
Qualquer pessoa pode doar órgãos?
Sim, desde que seja saudável. Caso a família autorize a doação depois de conversar com a equipe médica, os órgãos são retirados e passam por um processo de resfriamento para que as condições vitais sejam mantidas até que sejam implantados. A presença de infecções não controladas ou o fato dos órgãos, por algum motivo, não estarem em boas condições são impeditivos comuns.
Como funciona a doação em vida? Quais órgãos podem ser doados nesse caso?
Para a doação intervivos, são realizados alguns exames para comprovar se o órgão do doador é compatível com o do receptor. Nesse caso, as doações costumam ser feitas entre pessoas da mesma família. Caso não haja parentesco, é necessário assinar uma autorização judicial. Os órgãos mais comuns de serem doados em vida são os rins – já que temos dois – e parte do fígado, além da medula óssea. Embora menos comuns, outros órgãos (ou parte deles) também podem ser doados em vida, como pâncreas, pulmão e intestino.
Quais órgãos e tecidos podem ser doados após a morte? Isso é feito em até quanto tempo depois da constatação do falecimento?
Quando uma pessoa tem um acometimento cerebral muito grande, os médicos já conversam com a família sobre a gravidade do caso e informam sobre a possibilidade de doação. A constatação da morte cerebral é feita a partir de exames clínicos e gráficos. Se o paciente não responde a estímulos específicos e não tem circulação sanguínea cerebral, é constatada a morte encefálica. Usualmente, depois de seis horas, repete-se os testes, e o resultado é comunicado à Central de Transplante do estado, que coordena doações e transplantes, dentro do Sistema Nacional de Transplantes (SNT). Então, inicia-se a captação de órgãos. Os órgãos que podem ser doados são fígado, pulmão, coração, intestino, pâncreas, fígado, útero e tecidos, como córnea, pele e ossos.
Como registrar a vontade de ser doador?
O ideal é conversar com a família sobre a vontade de ser doador de órgãos ainda em vida. Algumas pessoas deixam cartas manifestando que aceitam ser doador. Também é possível fazer um cadastro de autorização em uma plataforma do Conselho Nacional de Justiça, a Autorização Eletrônica de Doação de Órgãos, AEDO (ww.aedo.org.br). Não é preciso assinar nenhum documento. Somente doadores vivos precisam de autorização junto à Comissão de Ética do Hospital. Quando não há relação de parentesco entre doador e receptor, são necessárias autorizações judiciais.
Como funciona a fila única de transplantes no Brasil?
A fila única de transplante no Brasil é legislada pelo Sistema Nacional de Transplantes, que pertence ao Ministério da Saúde. Ela vale tanto para a rede pública como para a rede privada. A lista de espera se baseia em critérios técnicos, em que a tipagem sanguínea, compatibilidade de peso e altura, compatibilidade genética e critérios de gravidade distintos para cada órgão determinam a ordem de pacientes a serem transplantados. Pacientes em estado crítico são atendidos com prioridade. A impossibilidade total de acesso para diálise (filtração do sangue), no caso de doentes renais; a insuficiência hepática aguda grave, para doentes do fígado; necessidade de assistência circulatória, para pacientes cardiopatas; e rejeição de órgãos recentes transplantados são eventos determinantes de prioridade na fila de doação. Quando necessário, a ordem de chegada também funciona como critério de desempate.
Algumas pessoas expressam medo de serem doadoras e, em casos de urgência, não serem salvas pelos médicos. Isso pode acontecer ou é mito?
Não, isso não existe. O primeiro objetivo do médico é aliviar o estado geral do paciente e procurar sua melhora. A cirurgia para retirada dos órgãos envolve 16 especialidades. Não tem como um médico não querer salvá-lo, porque haverá, no mínimo, outros 15 sabendo o que está sendo feito. Se há uma injúria cerebral grave, o paciente está dentro de um hospital, em uma Unidade de Terapia Intensiva. Isso não acontece em qualquer hospital. Existem protocolos, tudo é registrado, constatado, conversado com a família, assinado, visto e revisto. Depois, quem faz a captação dos órgãos, por lei, tem de rever todo o processo.
O corpo fica desfigurado após a retirada dos órgãos?
Não. A reconstituição do corpo, que será entregue à família para o funeral, é obrigatória por lei.
Quantas vidas um único doador pode salvar?
Até 10 pessoas. Ao se tornar doador, você devolve a qualidade de vida ou mesmo uma vida útil a uma dezena de outras pessoas.