“TUDO NORMAL” Presença suspeita: governo decretou sigilo sobre crachás de Eduardo (foto) e Carlos Bolsonaro

Durante a campanha, o candidato Jair Bolsonaro costumava citar com frequência o versículo bíblico “conhecereis a verdade e a verdade vos libertará”. Desde sua posse, no entanto, o governo federal age de forma oposta a esse conceito: volta-se contra os princípios da transparência, usando todos os instrumentos legais a seu alcance para impedir que assuntos indesejados sejam divulgados à opinião pública. Criada para regulamentar a consulta a documentos oficiais em caso de solicitação feita por qualquer cidadão brasileiro, a Lei de Acesso à Informação (LAI) nasceu em novembro de 2011 com o objetivo de tornar pública a história do Brasil. Seu texto é aplicável aos três poderes da União, além de estados e municípios. Há um item de sua redação, porém, que permite a manutenção do sigilo de certos documentos quando eles são considerados “imprescindíveis à segurança da sociedade ou do Estado”. É justamente nesse ponto que o governo federal tem se apoiado para impedir o acesso a informações que podem lhe causar problemas políticos e legais, sem apresentar qualquer justificativa plausível.

O caso mais recente envolve o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) e o vereador Carlos Bolsonaro (Republicanos-RJ). Em julho, a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Covid recebeu a confirmação da existência de crachás de acesso ao Palácio do Planalto em nome dos filhos do presidente. Quando um veículo da imprensa solicitou detalhes sobre os crachás, a Secretaria-Geral da Presidência respondeu que as informações diziam respeito “à intimidade, à vida privada, à honra e à imagem dos familiares do senhor presidente da República”. E impôs às informações um sigilo de 100 anos, o prazo máximo previsto pela lei. Na quarta-feira, 4, o deputado Gustavo Fruet (PDT-PR) encaminhou um pedido a Ana Arraes, presidente do Tribunal de Contas da União (TCU), solicitando dados sobre a quantidade de atos classificados como “reservados, secretos e ultrassecretos” desde 2019. Segundo o deputado, a postura do governo federal é “sem precedentes”. Essa, no entanto, não foi a primeira vez que o governo usou a brecha na lei para evitar esclarecimentos.

Em janeiro, o presidente Bolsonaro já havia decretado o mesmo sigilo de 100 anos sobre dados relativos a seu cartão de vacinação, após solicitação semelhante feita pela imprensa. “Não tem nada de esquisito, nada de anormal no que foi feito”, afirmou Bolsonaro em entrevista a uma rádio de Natal (RN) na última quarta-feira 4. Ao contrário do que defende o governo, no entanto, a decisão do presidente não tem nenhuma relação com a “honra” ou “intimidade” dos filhos do presidente — até porque não há nenhum problema em receber visitantes no Palácio do Planalto. O que o governo busca é impedir que a CPI da Covid cruze as datas dos seus crachás com reuniões e encontros investigados pelos senadores, uma vez que há suspeitas de que ambos, além do senador Flávio Bolsonaro (Patriota-RJ), tenham participado de decisões na área da saúde que não guardam relação alguma com suas funções – nenhum deles, afinal, ocupa cargo no governo. Segundo o ex-ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, era comum a participação de Carlos Bolsonaro em reuniões ministeriais. Representantes da Pfizer também confirmaram que ele, o assessor Filipe Martins e o então secretário de Comunicação, Fábio Wajngarten, também estiveram em encontros que envolveram a negociação de vacinas.

SEGREDO PAZUELLO: processo sobre presença em ato político só virá a público em 2121 (Crédito:Marcelo Chello)

O governo não tem usado o “sigilo de um século” apenas para questões relativas ao presidente e seus filhos. O processo que investigou a presença do general Eduardo Pazuello, ex-ministro da Saúde, em um palanque ao lado do presidente Jair Bolsonaro, em 23 de maio, também recebeu o mesmo e longo sigilo. A ação havia sido aberta pelo Exército, uma vez que o Estatuto das Forças Armadas não permite que militares na ativa participem de atos políticos – é o caso de Pazuello, que é general. Pazuello não foi punido, mas os dados “sobre a intimidade, vida privada e honra” do investigado só poderão se tornar públicos em 2121.

A estratégia vem sendo usada até com personagens menos estrelados do que os filhos do presidente ou aliados de primeira ordem, como o general Pazuello. O Itamaraty decretou o mesmo prazo para o sigilo sobre o caso do médico bolsonarista Victor Sorrentino, detido no Egito após fazer piadas sexistas diante de uma mulher muçulmana. Foi um episódio vergonhoso que se tornou um incidente diplomático: o governo brasileiro teve de intervir junto ao governo egípcio para liberá-lo. Até órgãos federais como a Caixa Econômica Federal tem abusado do instrumento que torna os documentos secretos: o banco decretou sigilo sobre o cachê pago ao locutor de rodeios Cuiabano Lima, contratado para estrelar a campanha nacional sobre o auxílio emergencial. O locutor de rodeios é amigo do presidente Bolsonaro e frequentador do Palácio do Planalto. Com a imposição de tantos sigilos, fica difícil os brasileiros “conhecerem a verdade”, como dizia o versículo bíblico.