Nenhuma disputa eleitoral é acompanhada com tanta atenção pelo mundo como a pela Casa Branca. O cargo de presidente dos Estados Unidos tem grande poder político, econômico e militar, e suas decisões provocam efeitos muito além de suas fronteiras.

O pleito da terça-feira (05/11) desperta particular apreensão: a democrata Kamala Harris e o republicano Donald Trump estão em empate técnico nas pesquisas, e Trump já demonstrou no seu mandato anterior seu potencial disruptivo para a estabilidade democrática e o combate às mudanças climáticas.

Para o Brasil, o impacto de uma vitória de Trump deve ser significativo: fortalecimento da extrema direita, redução de financiamento e parcerias na área ambiental, entraves comerciais e pressão sobre a parceria com a China são alguns dos efeitos mencionados por especialistas ouvidos pela DW.

Já no caso de uma vitória de Harris, a tendência é a manutenção de uma relação morna entre Washington e Brasília, sem grandes ambições relacionadas à América do Sul, mais business as usual e com entendimentos para a defesa da democracia liberal e a proteção do meio ambiente.

Não é segredo quem é o candidato preferido do governo brasileiro. No início de junho, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva declarou que torcia para que o presidente americano Joe Biden vencesse – três semanas depois, ele depois abriu mão de sua candidatura à reeleição em favor de Harris. Já Trump apoiou a reeleição de Jair Bolsonaro em 2022, dizendo que Lula era um “lunático da esquerda radical”.

Democracia e extrema direita

Os EUA são uma referência para muitos no Brasil, e o resultado da disputa política americana às vezes reverbera no cenário político brasileiro. Um exemplo: em novembro de 2016, Trump foi eleito presidente pela primeira vez; dois anos depois, Bolsonaro venceu no Brasil. Em janeiro de 2021, apoiadores de Trump inconformados com sua derrota invadiram o Capitólio; também após dois anos, bolsonaristas indignados com seu fracasso eleitoral invadiram o Congresso, o Palácio do Planalto e o Supremo Tribunal Federal.

Neste ano, a campanha de Trump tem sido mais explícita do que a de 2016 em propostas de cunho autoritário – como usar instituições de Estado e as Forças Armadas contra seus adversários. E se ele for eleito, fortalecerá a posição da extrema direita ao redor do mundo, inclusive a do Brasil, afirma à DW a cientista política Maria Hermínia Tavares, professora aposentada da USP e pesquisadora sênior do Cebrap.

“Uma vitória do Trump vai diminuir ainda mais a capacidade de democracias liberais de fazerem frente a uma ascensão de regimes autoritários e de movimentos de extrema direita”, afirma. “Existe uma influência clara e uma linguagem comum nesses movimentos, e uma vitória do Trump fortalece a extrema direita no Brasil, que já é forte.”

Um eventual sucesso de Trump em 2024 trará um vento de esperança para o bolsonarismo em 2026, acrescenta Roberto Goulart Menezes, professor de relações internacionais da UnB e pesquisador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre os Estados Unidos (INCT-INEU).

“Há um vínculo claro do núcleo duro do bolsonarismo com a extrema direita dos Estados Unidos. Se ele assumir a Casa Branca, essa rede se consolida mais”, diz, citando as articulações de Eduardo Bolsonaro com o trumpismo e lembrando que ele chegou a ser cogitado por Bolsonaro para ser embaixador do Brasil no país.

Se Harris vencer, a tendência é de menor instabilidade na democracia brasileira e latino-americana como um todo, diz Menezes. “O governo Biden foi decisivo para o Bolsonaro não triunfar com o golpe no Brasil – eles se mobilizaram durante meses para que o Brasil não saísse do trilho.”

Parcerias sobre mudanças climáticas

Um ponto de convergência entre os dois atuais governos é a defesa do meio ambiente. As gestões Lula e Biden firmaram parecerias para iniciativas climáticas, e a Casa Branca anunciou um plano de doar 500 milhões de dólares para o Fundo Amazônia ao longo de cinco anos – dos quais 53 milhões já foram transferidos.

O valor total anunciado pelos EUA é superior ao que Noruega, Alemanha e Petrobras doaram ao Fundo Amazôniaao longo de 14 anos, diz Menezes. Se Trump vencer, a tendência é de desmobilização dessas parcerias na área ambiental. “O Trump tirou os Estados Unidos do Acordo de Paris”, lembra.

Os dois atuais governos também avançaram em negociações sobre a economia verde, buscando alinhar objetivos do Green New Deal de Biden aos do Plano de Transformação Ecológica de Lula, e essas conversas devem prosseguir sob um eventual governo Harris, diz Menezes. Até agora, porém, pouco de concreto já foi anunciado – como investimentos americanos para extrair minerais críticos.

“Para o Brasil, essa cooperação na área ambiental é muito importante tanto no que diz respeito a recursos como a parcerias técnicas e científicas”, afirma Tavares. Se Trump vencer, ela projeta que essas ações serão paralisadas. “O Trump não é só muito nacionalista e isolacionista, mas também negacionista do ponto de vista ambiental.”

Comércio exterior

Os EUA são o segundo maior destino das exportações brasileiras. Em 2023, o país comprou 37 bilhões de dólares do Brasil, só atrás da China, que comprou 104 bilhões de dólares no mesmo período, segundo dados do Comex Stat.

O perfil de exportação para os dois países também é diferente. Enquanto para a China predomina a venda de commodities, para os Estados Unidos também são vendidos produtos semimanufaturados ou manufaturados, diz Menezes.

Entre as dez categorias de itens mais exportados para a China, todas são commodities agrícolas ou minerais, enquanto no mesmo ranking para os EUA constam também máquinas e aparelhos, aeronaves e produtos químicos. No entanto, a relação comercial com a China é superavitária para o Brasil, e com os EUA é deficitária.

No quesito investimento direto no Brasil, os americanos lideram, com um estoque de 246,3 bilhões de dólares em 2022, cerca de um quarto do total, segundo estudo da Apex Brasil divulgado neste ano, quando as relações comerciais entre os dois países completaram 200 anos.

“Os EUA não estão implicados diretamente no processo de desindustrialização da economia brasileira, como é o caso da China”, diz Menezes. Mesmo assim, a Casa Branca não tem em vista nenhum projeto ou acordo comercial mais ambicioso para o Brasil ou a América Latina, e isso não deve mudar, seja com Trump ou com Harris. “Não somos um espaço de primeira ordem para os EUA”, afirma.

A maior alteração nesse campo deve ocorrer após uma eventual vitória de Trump, que prometeu na campanha aumentar linearmente em 10 pontos percentuais as tarifas de importação. Para Tavares, se o acesso de produtos brasileiros ao mercado americano for dificultado, a tendência é o Brasil desviar uma parcela ainda maior de seu comércio exterior para a Ásia.

Proximidade entre Brasil e China

Por sinal, a relação do Brasil com a China é outro ponto que pode ser foco de tensões se Trump vencer. Washington considera Pequim uma adversária, e vem adotando políticas comerciais e regulatórias agressivas para tentar conter a expansão da potência asiática.

Enquanto isso, a relação entre Brasil e China se aprofunda. O país se tornou o maior parceiro comercial do Brasil em 2009 e consolidou-se nessa posição. Os dois são membros do Brics, e Pequim vem tentando convencer Brasília a integrar seu programa de desenvolvimento da infraestrutura global, a Iniciativa do Cinturão e Rota.

“A China está entrando com tudo no Brasil, e começa a entrar também na cooperação acadêmica e científica. Mas tenho a impressão que o establishment democrata americano ainda não se deu conta disso”, afirma Tavares.

Já sob Trump, um eventual endurecimento dos EUA sobre o tema tende a empurrar o Brasil ainda mais na direção da China. “A esquerda brasileira já tem uma tradição de um certo antiamericanismo, e uma vitória do Trump vai fortalecer esses setores, que dirão: ‘vamos para o Brics, são mais importantes que outras coalizões internacionais’. Não acho que isso seja necessariamente bom”.

Menezes também avalia que um governo Trump tenderá a pressionar com mais agressividade Brasília para que repense sua relação com Pequim. Ele cita como exemplo a decisão de a Casa Branca “advertir” em outubro passado o Peru sobre a concessão de obras de infraestrutura aos chineses em seu território, das quais a joia é o novo porto ultramarino de Chancay. O porto será inaugurado em novembro com a presença do presidente chinês, Xi Jinping, que em seguida visitará o Brasil e se reunirá com Lula.

Falta de projetos ambiciosos

Seja quem for o vencedor, o Brasil deve seguir fora do radar de prioridades da Casa Branca, que tem outros desafios internacionais mais prementes como a China, a imigração ilegal por meio do México e a guerra entre Israel e o Hamas.

A última Cúpula das Américas, realizada em Los Angeles em 2022, foi “esvaziada”, lembra Menezes, e a Casa Branca segue sem ter uma agenda ambiciosa para a América Latina. É sintomático que, durante seu mandato, Biden não fez nenhuma viagem ao Brasil – há expectativa que ele possa comparecer à cúpula do G20 no Rio de Janeiro, em 18 e 19 de novembro, mas ainda não confirmou sua presença.

“Quando você fala em América Latina para os Estados Unidos, isso significa México, uma parte da América Central, por conta de Cuba, e países que criam problemas, como a Venezuela. Tirando isso, o interesse do governo é baixo”, diz Tavares.

Mas ela enfatiza que as trocas entre os dois países são muito mais amplas do que a interação entre os dois governos, e envolve uma trama de relações “densas e importantes” da sociedade civil e do meio acadêmico – sem mencionar o grande interesse do brasileiro pelo país como destino turístico e referência cultural e de valores.