Na primeira vez que um presidente americano foi submetido a um processo de impeachment, em 1868, o Brasil ainda era um império. Os Estados Unidos da América, porém, já emergiam como uma potência mundial e funcionavam sob os ditames de uma constituição de quase cem anos. Na época, Andrew Johnson, sucessor de Abraham Lincoln, virou alvo dos republicanos quando vetou leis que garantiriam direitos aos ex-escravos. Foi absolvido por um voto. Outros dois casos aconteceram depois desse: Richard Nixon, em 1974, que renunciou, e Bill Clinton, em 1998, absolvido. Apesar de apenas três processos oficiais terem ocorrido em mais de dois séculos, especulações sobre o impedimento de presidentes são frequentes na democracia americana. Não surpreende, portanto, que o assunto volte à tona com Donald Trump, 45º homem a governar país. Figura controvertida, ele jamais foi uma unanimidade, nem mesmo entre os líderes do Partido Republicado, pelo qual se elegeu. Agora, em meio a acusações feitas contra sua gestão pelo ex-diretor do FBI James Comey, Trump pode ser processado por obstrução de Justiça e perder apoio de seus aliados. As declarações de Comey tendem a engrossar o coro de quem pede o afastamento de Trump, ainda que o impeachment, por enquanto, não passe de uma vaga conjectura.

James Comey depôs no Senado na quinta-feira 8. Afirmou que, em uma reunião no dia 14 de fevereiro no Salão Oval da Casa Branca, Trump teria pedido a ele que “deixasse passar” uma investigação contra Michael Flynn, ex-assessor de segurança nacional, sobre sua ligação com autoridades russas. “Espero que você esteja disposto a deixar isso passar”, foi a frase usada pelo presidente. No total, foram nove encontros entre os dois desde que o escândalo do envolvimento com a Rússia veio à tona. Esse dado, por si só, já chama a atenção. Tradicionalmente, o presidente americano sequer fala diretamente com um diretor do FBI — órgão federal de investigação criado em 1908 com autonomia em relação ao gabinete presidencial. Para que não haja qualquer tipo de complicação ética entre as partes, os assuntos tratados pelo FBI devem passar por um procurador-geral. Não foi o que aconteceu nas reuniões com Comey. A alegação dele é também de que Trump pediu “lealdade” e que abafasse o caso envolvendo seu nome com o governo russo. As conversas foram registradas por escrito em memorandos, e o fato de não terem sido gravadas enfraquece a denúncia. Trump sugeriu em um tuíte, em maio, que teria essas gravações. Mas ainda não se pronunciou sobre o assunto.

De um lado, aliados republicanos tentam defender o presidente. Líder na Câmara dos Representantes dos Estados Unidos, Paul Ryan afirmou que o empresário pode ter dito o que disse por ser “novo” no cargo e não saber lidar com os protocolos tradicionais. Também em sua defesa, outros congressistas dizem que Comey não pode provar nada e que, por enquanto, sua acusação é só com palavras. No geral, viram Trump saindo como vitorioso do discurso de Comey, que seria baseado em acusações sem fundamento. O próprio presidente se manifestou, mais uma vez via Twitter. “Apesar de tantas falsas declarações e mentiras, a justiça foi total e completa. E uau, Comey é um ‘vazador’”, escreveu, referindo-se ao fato de alegações do ex-diretor do FBI terem saído na imprensa antes do seu depoimento.

Há entre os próprios republicanos uma parcela de políticos que já se mostra reticente à postura de Donald Trump. No Senado, alguns têm se incomodado com a volatilidade do presidente e já dão sinais de um rompimento desde a demissão de James Comey, em maio passado, segundo o jornal “The New York Times”. Pesa ainda a popularidade em queda de Trump. Uma pesquisa divulgada pela Quinnipiac University um dia antes do depoimento de Comey mostrou que a aprovação do líder caiu 3 pontos em menos de um mês, indo de 37% para 34%. Segundo o levantamento, o tema Rússia ainda é um complicador. Cerca de 70% se dizem preocupados com a ligação de Trump com o país de Vladimir Putin, sendo que 54% consideram a relação amigável demais. A sensação de crise é notória, mas a ideia do impeachment ainda é precipitada.

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Cerca de 70% dos americanos se dizem preocupados com a ligação de Trump com o país de Vladimir Putin, sendo que 54% consideram a relação amigável demais

É preciso, primeiro, que a investigação prossiga. O Comitê de Inteligência no Senado continuará avaliando as acusações sobre uma interferência da Rússia na eleição presidencial. O depoimento de Comey é grave, mas não é o fim. Ele faz parte de um processo em andamento. Só por ele não se pode concluir que houve obstrução de Justiça em uma intenção genuína de bloquear o processo contra Michael Flynn, pois o próprio Comey não afirmou isso com todas as letras. Também vale retomar que, apesar de toda a especulação, em mais de 200 anos de democracia americana processos de impeachment só foram levados a cabo três vezes. É um procedimento incomum, complexo e político. A única certeza agora é que existe, sim, uma crise no governo Trump dentro e fora do Congresso. Enquanto isso, o presidente tuíta para se defender.

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