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O republicano Donald Trump elegeu-se presidente dos EUA enfatizando em cada discurso o slogan “América first”. Refere-se a colocar o bem-estar social dos americanos em primeiro lugar. Quando isso tem desdobramentos na política externa, traduz-se pela defesa intransigente do nacionalismo e do unilateralismo. Nada de globalização nem de políticas internacionalistas. Cada presidente, desde que eleito pelas regras do jogo democrático como Trump o foi, tem o direito de escolher qual o caminho que acha mais saudável para o país que comanda, sobretudo se tal caminho tiver sido claramente anunciado ao longo da campanha eleitoral. Não resta dúvida de que o “América First” foi exaustivamente defendido nos palanques. Políticas interna e externa de uma nação, no entanto, não são dogmas. Há, sim, que se olhar para os lados, principalmente em momentos que fazem com que os povos se vejam como espécie humana e não como pertencentes a essa ou àquela nacionalidade — infelizmente, todos se verem como uma única espécie só acontece em momentos de desgraça.

O ataque pandêmico é um desses momentos, e aí o senhor Donald Trump tem de trocar o “América first” pelo “Human first”. Não é o que vem fazendo. O presidente transformou o vírus em um inimigo político externo, jogou no lixo o princípio ético de solidariedade e passou a atravessar negociações de outros países na compra de máscaras e respiradores, duas das mais importantes armas contra a Covid-19. Cerca de duzentas mil máscaras, produzidas nos próprios EUA, que foram adquiridas pela Alemanha, não chegaram a seu destino. Segundo o ministro do Interior alemão, Andreas Geisel, foram confiscadas na Tailândia e o governo Trump teria se apossado delas. Se assim foi, trata-se de um ato de “pirataria moderna”, como classificou Geisel.

Recorrendo à “Defence Production Act”, lei da época da Guerra da Coreia na década de 1950, Trump proibiu a empresa americana 3M, que produz máscaras, de seguir com exportações. Tal lei obriga que indústrias produzam para a defesa nacional. Ocorre, porém, que não cabe nenhum “América first” quando o planeta é dizimado
por um vírus e diversos países carecem de suprimentos médicos essenciais, como respiradores e máscaras.

Para Trump, evidencia-se uma guerra, mas não contra a doença, e, sim, contra as demais nações. O presidente americano é acusado também de ter boicotado a França e a Espanha ao oferecer ao governo chinês mais dinheiro por máscaras e respiradores, como se tudo não passasse de uma jogada comercial. Um simples leilão.

No Brasil, governos da região Nordeste acusaram os EUA de reterem, em Miami, um carregamento com seiscentos respiradores encomendados da China. Em nota oficial, a Casa Civil do governo da Bahia diz que “a operação de compra dos respiradores foi cancelada unilateralmente pelo vendedor”. O governo baiano pagaria R$ 42 mil por todo o material. A suspeita é que os EUA de Trump tenham oferecido na última hora um valor bem maior. Na mesma direção apontam autoridades francesas, afirmando que o presidente americano está “furando a fila” e desfazendo contratos já assinados. Alguma dúvida se isso está de fato acontecendo? A resposta vem da própria fala de Trump: “não queremos outros conseguindo máscaras”. Tudo isso está longe, muito longe, do tradicional “América first” embutido na democracia e no liberalismo americano. Bem ao contrário, a política usurpadora de Trump terá graves consequências humanitárias. Os EUA entrarão para a trágica história do novo coronavírus como “América last”.