Donald Trump está prestes a levar uma surra nas eleições dos Estados Unidos, mas Jair Bolsonaro continua pronto a imitá-lo no que ele tem de pior. 

Ontem, o presidente brasileiro reativou a lenga-lenga sobre votos impressos, que seriam o remédio para garantir que o sistema eleitoral brasileiro seja “confiável”. Jamais houve indício de fraude nas votações com urna eletrônica. O Supremo Tribunal Federal já decidiu que impressão de votos é inconstitucional. Mas os fatos não importam para gente como Bolsonaro e Trump. 

O americano está levando a negação da realidade aos extremos mais infames. Para ganhar o poder vale tudo, inclusive fazer que a maior democracia do mundo pareça uma república das bananas. Sistemas de votação e apuração que funcionaram desde sempre são pintados de repente como frágeis e inconfiáveis. Quanto aos adversários, nem é preciso dizer: não merecem respeito, são gente sórdida e desonesta. 

Nas eleições americanas de 2000, a votação na Flórida foi decisiva. Quem vencesse no Estado obteria a maioria no colégio eleitoral. Quando ficou para trás por uma margem ínfima, o candidato democrata Al Gore foi brigar na Justiça. Queria uma recontagem, argumentando que milhares de eleitores tiveram votos computados de maneira errada porque a cédula usada na Flórida, além de confusa, exigia que o eleitor perfurasse um quadradinho no papel – e quadradinhos mal perfurados podiam não ter sido registrados. 

Entre a Justiça estadual e a Suprema Corte, a batalha entre democratas e republicanos se estendeu por 36 dias. Mais de um mês de espera, até que o mundo conhecesse o presidente americano. Finalmente, a Suprema Corte decidiu que não havia embasamento para a recontagem pedida por Gore. George W. Bush foi declarado vencedor. 

Se vinte anos atrás os democratas apelaram à Justiça para tentar vencer uma eleição, por que criticar Donald Trump, que também mobiliza uma tropa de advogados para questiona a apuração de votos? Não é usar dois pesos e duas medidas? 

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Recorrer à Justiça nunca é um problema. A Justiça existe para resolver conflitos. Alguns questionamentos de Trump podem inclusive ter mérito, pois abordam discrepâncias entre regras eleitorais fixadas pelo Legislativo e pelo Tribunal Superior da Pensilvânia. Se as regras do legislativo forem endossadas, muitos votos que chegaram pelo correio depois do dia da eleição vão acabar no lixo (o que não deve alterar o resultado final).

A diferença é que além de recorrer aos tribunais, Trump tem feito acusações pesadas contra os democratas e questionado a lisura do sistema eleitoral americano. Bem ao seu estilo, o (ainda) presidente não usa de meias palavras.  Segundo ele, existe fraude pura e simples na apuração de alguns Estados. As  eleições estão sendo roubadas.  

Nesta quinta-feira, depois de inundar suas redes sociais com mensagens que põem em dúvida a votação, Trump tentou levar para a televisão seus disparates. O três maiores canais de televisão aberta dos Estados Unidos interromperam no meio a transmissão do pronunciamento, e seus âncoras passaram a desmenti-lo. 

Nem mesmo veículos de imprensa que apoiaram Trump ao longo dos últimos anos compram seu discurso. O jornal The New York Post publicou uma manchete dizendo que as alegações do republicano são infundadas. A Fox News observou que nenhuma prova concreta de fraude foi apresentada até agora pelo time de Trump.  

O jornal The Washington Post demonstrou que uma das principais teorias conspiratórias apresentadas por Trump não passa disso mesmo: teoria conspiratória sem pé nem cabeça.

O presidente esbraveja porque perdeu a dianteira em Estados-chave como Pensilvânia, Michigan e Wisconsin. Ele escreveu no Twitter: “Eu estava liderando, com frequência de maneira sólida, em vários Estados governados por democratas. Então, uma a uma, as vantagens sumiram  magicamente, conforme cédulas surpresa entravam na contagem.”

Trump insinua que as “cédulas surpresa” são falsas – e não há provas disso. Insinua que diabólicos governadores democratas trapaceiam para prejudicá-lo. O mais interessante na reportagem do Post é justamente mostrar que a contabilização dos votos em Estados-pêndulo não atrasou por causa dos democratas, mas porque deputados republicanos trabalharam com afinco, nos últimos meses, para impedir que a apuração de cédulas enviadas pelo correio começasse com antecedência. Ou seja, o presidente incendeia um circo que os republicanos armaram. Quem mesmo falou em trapaça?

Antes do fim desta sexta-feira, Donald Trump deve descobrir que fatos existem, não só interpretações. E que até para ele há limites.


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