A reunião anual do G20, marcada para acontecer entre os dias 22 e 23 de novembro na África do Sul, tornou-se mais um dos campos de batalha do presidente dos Estados Unidos, Donald Trump. Poucas semanas antes da Cúpula dos Líderes, o mandatário anunciou que não viajará ao continente africano e garantiu que nenhum outro representante da Casa Branca participará do encontro.
O esvaziamento das cadeiras, segundo Trump, seria uma reação à suposta “perseguição de brancos” que ocorre na região. Mesmo desmunido de provas e contestado por agências de checagem, o líder acusa a África do Sul de promover uma limpeza étnica contra “afrikaners” — como são chamados os cidadãos brancos do país, descendentes de colonos europeus.
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A ausência do americano deixou uma lacuna importante, uma vez que os EUA serão os próximos anfitriões da Cúpula dos Líderes. Devido ao boicote de Trump, a África do Sul decidiu “entregar” simbolicamente a presidência rotativa do G20 para uma cadeira vazia.
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) demonstou apoio a Cyril Ramaphosa, presidente sul-africano, em meio ao embate. Em 2024, o Brasil passou o comando do G20 para o país, com o qual nutre boas relações.
Neste texto, a IstoÉ entrevistou professores especializados em relações políticas africanas para entender o que está por trás da ofensiva de Trump, incluindo os interesses econômicos e os estereótipos étnicos impostos ao continente.
Reforma agrária na África do Sul
A lei que motivou a indignação de Donald Trump é, de forma resumida, uma medida de reforma agrária. Ela foi oficializada pelo presidente Cyril Ramaphosa no primeiro mês do ano e busca reverter as desigualdades sociais herdadas pelo regime racista do Apartheid.
Ramaphosa chegou a lutar ao lado de Nelson Mandela contra o regime e afirmou que a justiça econômica prometida com o fim do Apartheid nunca foi efetivada. Desde a década de 1990, a população negra do país foi sistematicamente marginalizada e nunca teve acesso às terras, o que justifica a nova lei de distribuição de terras.
A professora de relações internacionais da ESPM Natalia Fingermann explica que a África do Sul é um dos países com maior desigualdade e concentração de renda no mundo, cenário “diretamente ligado à concentração de terras”.
Apesar de os negros serem maioria esmagadora no país, 72% das terras agrícolas pertencem à minoria branca (os chamados afrikaners), que compõem 7% da população. A comunidade preta, por outro lado, possui 4% das propriedades. Para o professor de Relações Internacionais da África e do Oriente Médio da Unifesp Anselmo Otavio, essa separação é uma das heranças mais claras do Apartheid.
“Desde término do Apartheid, há um processo de segregação racial, mas também uma questão de segregação espacial, em que grande parte das melhores terras ficaram com a população branca e a população negra ficou com as piores terras”.
A lei promovida por Cyril Ramaphosa permite a desapropriação de terras privadas de qualquer proprietário, branco ou não, para fins públicos ou de interesse público sob algumas circunstâncias. A legislação inclui no cirtério projetos de infraestrutura, expansão de serviços públicos, conservação ambiental ou distribuição equitativa de recursos.
A polêmica gira em torno principalmente de um dispositivo que permite ao governo, em casos mais raros, confiscar terras sem pagar qualquer indenização. A cláusula limita os casos de “indenização nula” apenas a terras improdutivas, abandonadas ou degradadas ou quando a propriedade acumula dívidas.
Racismo como arma do ‘afropessimismo’

U.S. President Donald Trump meets South African President Cyril Ramaphosa in the Oval Office of the White House in Washington, D.C., U.S., May 21, 2025. REUTERS/Kevin Lamarque
A insatisfação de Trump em relação à lei de expropriação foi imediata. Desde que voltou à Casa Branca, o republicano direciona diferentes retaliações à África do Sul. O presidente chegou a constranger publicamente o homólogo sul-africano, em abril, ao convidá-lo ao Salão Oval e direcionar uma série de denúncias infundadas.
A conversa, que tinha como proposta temas de comércio e cooperação tecnológica, virou palco de acusações de confisco de terras de fazendeiros brancos, promulgação de políticas discriminatórias contra brancos e adoção de uma política externa antiamericana por parte de Ramaphosa. Trump ainda mostrou fotos e vídeos que provariam o suposto “genocídio” na África do Sul, mas elas foram desmentidas por agências de checagem.
Em março de 2025, os EUA declararam o embaixador da África do Sul em Washington, Ebrahim Rasool, persona non grata, dando-lhe 72 horas para sair do país — na ocasião, o secretário de Estado americano, Marco Rubio, acusou o diplomata de ser um “político racista” e de odiar os EUA e Trump.
Antes disso, em fevereiro de 2025, Trump assinou um decreto para suspender a assistência financeira à África do Sul, investimento que atrapalhou especialmente a estrutura de combate à HIV no país.
Para Anselmo Otavio, o desdém contínuo de Trump é exemplo de uma visão “afropessimista” — perspectiva preconceituosa de que o continente precisa ser constantemente “ajudado”, sem qualquer capacidade de autonomia ou relevância própria. “É uma maneira reducionista e preconceituosa, mas tem adesão”, afirmou.
Os relatórios mais recentes das Nações Unidas, porém, indicam uma realidade inversa: a África é a região que mais cresce economicamente no mundo e tem passado por um processo “muito claro de renascimento africano”, segundo indica Anselmo.
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Os dois professores concordam que a relação entre as duas nações remonta anos de conflitos diplomáticos. Segundo Natalia Fingermann, a novidade é que, sob Trump, “o incômodo americano está sendo traduzido de maneira racista”.
Interesses econômicos e o receio da autonomia

Líderes dos países do Brics posam para foto durante reunião de cúpula no Rio de Janeiro – REUTERS/Pilar Olivares
Os especialistas explicaram à IstoÉ, apesar da parceria econômica entre os dois países, o governo sul-africano procura manter certa “distância” do EUA. Ramaphosa já se mostrou ciente de que a Casa Branca tem interesse nos recursos de seu país. “Temos materiais essenciais que vocês precisam para reindustrializar o país, incluindo minerais de terras raras”, disse a Trump em abril.
Segundo o mandatário, Washington é seu “segundo parceiro comercial mais importante, apenas depois da China”. Isso significa que a aliança entre países integrantes do Brics (Brasil, Rússia, Índia, China, África do Sul, Arábia Saudita, Egito, Emirados Árabes Unidos, Etiópia, Irã e Indonésia) ainda supera os EUA, que buscam evitar a emancipação do bloco. Para o professor Anselmo Otavio, a África do Sul é um “case de sucesso”: em pouquíssimos anos, saiu da alcunha de “pária internacional” para se tornar um dos principais atuantes do cenário global”.
A aversão de Trump à lei de reforma agrária coincide com as alianças do americano no local. Segundo Fingermann, a Casa Branca tem diversos aliados “afrikaners”, como o próprio Elon Musk. Apesar do afastamento público entre as duas figuras durante os últimos meses, Musk foi um dos principais financiadores da campanha do republicano e integrou seu governo. Dono de empresas como a SpaceX e o X (antigo Twitter), o bilionário é sul-africano, mas afirma que brancos são “perseguidos” no país.