Acervo de corte trabalhista de Porto Alegre é considerado patrimônio histórico por refletir contexto socioeconômico dos processos em diferentes épocas. Lama é removida manualmente e deve ficar até 2027.Entre as prateleiras de nove metros de altura repletas de pastas de documentos, Rosane Casanova ainda vê a lama que cobre aquelas armazenadas nos primeiros três metros.
A situação se deve às históricas enchentes que atingiram o Rio Grande do Sul há um ano, no final de abril de 2024, e deve continuar assim por mais dois anos e meio. As primeiras visitas dela e colegas do TRT (Tribunal Regional do Trabalho) em Porto Alegre não foram a pé, mas em caiaques e pranchas de stand-up paddle.
"A limpeza de todos estes processos é um trabalho de formiguinha, e que deve ser concluído somente ao final de 2027; o que mais importa é garantir a informação e que o cidadão consiga voltar a consultá-los", explica a desembargadora, que hoje atua como coordenadora da Comissão de Memória do TRT-RS (Tribunal Regional do Trabalho).
No cargo, ela é uma das pessoas à frente da recuperação de mais de um milhão de processos trabalhistas que passaram um mês submerso sob as águas barrentas do Guaíba entre maio e junho do ano passado.
A juíza responsável por coordenar as ações de resgate e restauro dos processos atingidos pela água relembra os medos e precauções tomadas. "Durante o mês de maio [de 2024], por mais que nós estivéssemos planejando já tudo o que faríamos com o arquivo, estávamos focados em salvar vidas", conta Anita Lübbe.
Ela explica que levaram mais de um mês para voltar ao Arquivo Geral – um espaço de três depósitos localizado na zona norte de Porto Alegre e vizinho ao aeroporto Salgado Filho. Ele foi reaberto somente em 21 de outubro de 2024, quase seis meses após as maiores enchentes já ocorridas no estado. Desde então, a equipe do TRT se dedica quase exclusivamente a recuperar os mais de 3 milhões de processos guardados ali.
Desse inventário, um terço ficou submerso, boa parte deles considerados Patrimônio Memorial da Humanidade. Todos aqueles encerrados entre 1935 e 2000 foram reconhecidos pelo Programa Memória do Mundo da Unesco por conta do seu valor histórico, já que o conjunto reflete contextos socioeconômicos de diferentes épocas. A certificação foi concedida a dez tribunais no Brasil.
"Estes processos não podem ser eliminados; eles precisam estar à disposição, pois são Patrimônio da Humanidade, então a grande preocupação neste momento é preservar estes e os que estão ainda em atividade na Justiça", explica Lübbe.
Apesar do desafio e dos riscos, ela diz que até o momento nenhuma informação dos documentos já limpos e higienizados foi perdida, o que a deixa otimista.
Papel lavado
Máscara, jaleco e luvas são equipamentos imprescindíveis no ambiente. "Em junho, quando finalmente conseguimos entrar aqui fizemos exames da água para ver se havia microrganismos, se estava contaminado, e notamos que havia muito fungo nos documentos e no ar, era muito insalubre", conta Casanova.
A ameaça de perda de parte do acervo, no entanto, exige cuidado constante. Para Lübbe, o risco existe, mas é pequeno diante do cenário positivo encontrado até agora. "Estamos sempre checando se um fungo atacou, se voltou ou não… eu posso ter até um lá, bem seco, e daqui a pouco ninguém pode me dizer que lá no meio não há reprodução de alguma coisa", conta a juíza. "Ainda existe a urgência, o que sempre reforça nossa atenção."
Protegidos e sofrendo com o calor do edifício, os profissionais navegam pelos cerca de 6.000 m² de prateleiras dos dois galpões do arquivo. Os tomos de documentos são encaminhados para um galpão anexo, alugado para este trabalho, onde são lavados ainda fechados com água, sabão, esponjas e escovinhas quando necessário.
Com o arquivo ainda debaixo d'água, em maio de 2024, a equipe responsável optou por contratar um especialista em resgate e restauro de documentos. O professor Eutrópio Bezerra já tinha experiência no restauro de arquivos alagados no Nordeste, e orientou os trabalhos de lavagem, higienização, secagem, desfolhamento e digitalização dos processos.
Como a maior parte dos estragos ocorre nas capas, que são substituídas, restamresíduos nas margens externas dos documentos. Eles ficam dias secando o espaço livre do terceiro depósito, que recebeu ainda o investimento de desumidificadores e ventiladores.
"Assim que começamos o trabalho, chamamos uma empresa que cobrou 215 reais por fardo de processos apenas para fazer a secagem e a desinfecção. Temos aqui 86 mil fardos, o que daria um custo de quase R$ 18,5 milhões ", calcula. "Optamos então fazer por nossa conta… com tudo que adquirimos, com a contratação do especialista em reparo, da microbiologista, e de mais pessoas para trabalhar aqui, vamos gastar um quarto desse valor, e entregar os processos lavados, desinfetados e digitalizados", celebra. Parte da verba para o trabalho vem do Conselho Superior da Justiça do Trabalho (CSJT).
"Temos aqui uma demanda média de 50 a 60 pedidos por dia de desarquivamentos. Para encaminhamento de aposentadorias, de algum benefício previdenciário ou para dar andamento à execução de determinado crédito", conta Lübbe. A consulta aos processos físicos, que antes levava cerca de 20 dias entre o pedido e ficar à disposição das partes, hoje leva pelo menos dois meses.
Trabalho manual, pinças e secadores de cabelo
Todo o trabalho, da retirada das prateleiras ao resultado final, é manual, incluindo a digitalização feita após a secagem de folha a folha com o uso de pinças e secadores de cabelo. Em seguida, é feita asequente secagem em varais. Para a digitalização de cada página, o tribunal fez uma parceria com a Feneis (Federação Nacional de Educação e Integração dos Surdos) que trabalha com o auxílio de uma tradutora de Libras.
Os documentos estão distribuídos por três pavilhões, numa área de três mil metros quadrados. Somente aqueles que são desarquivados passam por digitalização. Ao longo do último ano, cerca de 96 mil processos foram limpos e higienizados, aguardando apenas a secagem e digitalização. O volume representa 8% dos que exigem higienização. Atualmente, a equipe não tem um cálculo de quantos foram digitalizados.
Matéria-prima da História
Ao longo de maio de 2024, um em cada dez moradores de Porto Alegre ficou sem luz por conta das enchentes. Não foi, porém, o primeiro blecaute massivo na capital gaúcha. Entre fevereiro e março de 1946, uma greve dos mineiros paralisou a geração termelétrica da cidade, deixando-a às escuras.
Naquele mesmo ano, o mineiro e ex-pracinha da Segunda Guerra Mundial Pedro Rodrigues de Almeida foi ameaçado de ser expulso de sua casa, propriedade da companhia de mineração para a qual trabalhava na região central do Rio Grande do Sul.
Assustado, pegou uma novidade à época: uma lanterna a pilhas recebida dos militares norte-americanos, e com ela ligada avançou contra os 12 operários e 2 engenheiros que tentavam remover o telhado da casa. Eles confundiram o objeto com uma granada e fugiram, deixando os móveis que Almeida acabara de comprar para seu casamento em paz.
Histórias como essas só vieram à tona graças à preservação de arquivos trabalhistas como o mantido pelo tribunal e que, antes pararem no depósito, sobreviveram a incêndios e enchentes. "A história é construída a partir de documentos; quanto mais você tem, mais vai saber do seu passado… com um cenário desses, ainda trabalhamos apenas com os fragmentos que sobreviveram e chegaram até nós", lamenta Clarice Speranza.
A historiadora é especialista em História do Trabalho e também viu como terrível o ocorrido com o galpão do TRT, além das tantas tragédias pessoais de alunos e parentes.
"Essa documentação permite acessar algo muito difícil para nós, historiadores, que é entender como um trabalhador comum desenvolve as relações cotidianas, familiares, culturais; os conflitos e as formas de mobilização", explica a professora da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul).
"As trajetórias dessas pessoas são as mais importantes, porque é nessas relações que se estabelece a História do Brasil, não só na história de grandes homens."