O versículo bíblico “conhecereis a verdade, e a verdade os libertará” é repetido à exaustão por Jair Bolsonaro há quatro anos. O discurso, porém, não coaduna com a prática. Desde que ascendeu ao Planalto, o presidente abusou de decretos de sigilo, impôs empecilhos a apurações sobre aliados e familiares e enfraqueceu a Polícia Federal e a Procuradoria-Geral da República. A falta de transparência repete-se na vida pessoal. Em vez de recorrer às ágeis e seguras transações bancárias, o capitão opta por operações em dinheiro vivo mesmo para o pagamento de boletos do dia a dia, método que prejudica o rastreamento e a identificação da origem dos recursos por órgãos como a Unidade de Inteligência Financeira, o antigo Coaf. Ou seja, na prática, Bolsonaro — deliberadamente ou não — evita que as contas dele passem pela minuciosa análise que alcança as movimentações financeiras de toda a população brasileira.

O HOMEM DA MALA O coronel Mauro Cid acompanha o presidente em todo e qualquer lugar que ele vá, inclusive a reuniões com militares (Crédito: Alan Santos)

A preferência do clã Bolsonaro pelo dinheiro em espécie está estampada desde a revelação de que, nos últimos 30 anos, a família, protagonista reincidente de escândalos de rachadinha, já comprou 51 imóveis com cédulas. Recentes quebras de sigilo do principal ajudante de ordens da Presidência, tenente-coronel Mauro César Barbosa Cid, corroboram a tese e mostram que velhos hábitos custam a morrer. Abastecido por mensagens trocadas em aplicativos de conversa, o material obtido pela PF aponta que, durante o atual mandato, pagamentos vinculados ao capitão e à primeira-dama Michelle foram realizados a partir de saques em dinheiro e posteriores depósitos fracionados, segundo noticiou o jornal Folha de S.Paulo. O caso recebeu da oposição o apelido de “rachadinha palaciana”. “É o método da rachadinha, só que no gabinete da Presidência”, disparou Paulo Teixeira, um dos coordenadores da campanha de Lula. “A familícia é corrupta”, prosseguiu o deputado Ivan Valente.

O mapa da movimentação surgiu em um processo improvável. O sigilo telemático de Mauro Cid, que abarca documentos salvos na nuvem, foi rompido no âmbito da apuração, relatada pelo ministro Alexandre de Moraes, que mira Cid, Bolsonaro e o deputado federal Filipe Barros pelo vazamento de um inquérito sigiloso sobre um ataque hacker ao sistema interno do Tribunal Superior Eleitoral — a divulgação do material foi planejada pelo presidente para desacreditar as urnas eletrônicas dias antes da votação em que a Câmara rejeitaria a implementação do voto impresso no País. No momento em que autorizou a cautelar, o objetivo de Moraes era garantir à PF os meios necessários para verificar como Mauro conseguiu acesso ao inquérito protegido por sigilo e de que forma contribuiu para a disseminação do conteúdo. Mas, com o tempo, e depois de uma ordem por uma varredura atenta, os investigadores acharam muito mais.

INVESTIGADO Coronel Cid, com farda do Exército, assessorou o presidente em recente viagem a Nova York: PF quebrou seus sigilos (Crédito:Stefan Jeremiah)

Os arquivos vasculhados detalham a atuação de Cid no pagamento de contas pessoais de Bolsonaro, ao estilo Fabrício Queiroz. Atestam, por exemplo, que ele fazia uma série de depósitos, que totalizavam R$ 2.840 mensais, a uma tia de Michelle, que, ocasionalmente, cuida de Laura, a caçula do presidente. O dinheiro vivo era usado, ainda, para o custeio de outras despesas, como o pagamento de planos de saúde. A PF pediu a quebra de sigilo bancário do ajudante de ordens para entender de onde vem a verba — dos cofres públicos, da conta pessoal de Bolsonaro ou mesmo das economias do tenente-coronel — e Moraes autorizou. A revelação da triangulação do dinheiro descompensou Bolsonaro. “Alexandre, você mexer comigo é uma coisa, você mexer com minha esposa, você ultrapassou todos os limites, Alexandre de Moraes. Todos os limites. Você está pensando o quê da vida? Que você pode tudo e tudo bem? Você um dia vai dar uma canetada e me prender? É isso que passa pela sua cabeça? É uma covardia”, esbravejou, em uma live, na qual classificou o ministro como uma pessoa “vil” e o acusou de ter divulgado as informações à imprensa.

Cautela

Apesar da ira de Bolsonaro, os detalhes sobre as controversas funções de Mauro Cid não vazaram por meio de Moraes. O ministro, inclusive, abriu um procedimento administrativo no gabinete para encontrar o responsável. Em um despacho na última terça-feira, 27, ele mandou o delegado que preside o inquérito, Fábio Schor, listar “todos os policiais federais que têm conhecimento” dos desdobramentos da quebra de sigilo. Além disso, as decisões de Moraes têm embasamento. O presidente do Instituto Não Aceito Corrupção, Roberto Livianu, explica que, diante de operações suspeitas, os juízes costumam prezar pelo que, no jargão jurídico, é conhecido como “poder geral de cautela”. “Esse preceito permite ao juiz expedir cautelares para assegurar a colheita da prova sob pena de haver o perecimento de evidências”, argumenta. O procurador sublinha que o aparente pequeno volume de dinheiro nas movimentações financeiras à primeira vista não pode comprometer a vigilância. “Às vezes, pequenos frascos guardam as grandes essências. Às vezes, pequenos valores podem esconder grandes fraudes. Por que não investigar?”, completa.

A PGR discorda. A instituição se opôs às quebras de sigilo telemático e bancário de Mauro Cid quando consultada por Moraes. O órgão, aliás, tentou enterrar por três vezes a investigação que abriu caminho para as cautelares. Em fevereiro, por exemplo, Augusto Aras rebateu a PF, que havia indiciado o tenente-coronel e imputado o crime de violação do sigilo funcional a Bolsonaro e Filipe Barros, e pediu o arquivamento do processo. Meses depois, foi Lindôra Araújo, a número dois da PGR, que voltou a carga contra o relator, frisando entender, inclusive, que “quaisquer elementos de informação que venham a ser decorrentes da decisão judicial ora impugnada, que decretou medidas investigativas de ofício, não serão utilizados”. Era um recado velado a respeito da situação de Cid. O imbróglio até chegou ao plenário do Supremo, mas um pedido de vista de André Mendonça interrompeu o julgamento.

NO EXTERIOR Quando Michelle viaja, como aconteceu no velório da Rainha Elizabeth, a filha Laura fica com sua tia e quem paga essas despesas é o coronel Cid (Crédito:Divulgação)

Procurado, o Planalto confirmou as transações feitas por Mauro Cid em nome de Bolsonaro e Michelle e, claro, buscou minimizar o caso, frisando que o ajudante de ordens “presta serviços de assistência direta e imediata ao presidente da República também nos assuntos de natureza pessoal, em regime de atendimento permanente e ininterrupto, em Brasília ou em viagem”. “O Presidente da República nunca sacou um só centavo no cartão corporativo pessoal”, concluiu.

A justificativa presidencial não é suficiente para abafar as suspeitas sobre as movimentações financeiras. As atribuições de Mauro Cid lembram as de Fabrício Queiroz no antigo gabinete de Flávio Bolsonaro na Assembleia Legislativa do Rio (Alerj). Investigações do Ministério Público fluminense, minadas pelo STJ e pelo STF, chegaram a revelar que o ex-assessor do 01 pagou mais de 100 boletos de contas pessoais dele, incluindo até mesmo mensalidades escolares das filhas, em dinheiro vivo. À época, foi justamente o rastreamento bancário que comprovou que os recursos para a quitação de parte desses débitos não haviam saído da conta de Flávio ou da esposa e, assim, indicou que a verba era fruto do suposto esquema de rachadinha protagonizado pelo hoje senador. Como os métodos se repetem, questiona-se mais uma vez: de onde vem o dinheiro?

O MAPA DAS SUSPEITAS

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1 Ajudante de ordens da Presidência, Mauro César Barbosa Cid entrou na mira do STF em meio a um processo ao qual Bolsonaro responde por ter vazado, ao lado do deputado Filipe Barros, um inquérito sigiloso que investiga um ataque hacker ao sistema interno do TSE em 2018

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2 Para municiar a apuração feita pela Polícia Federal, o ministro Alexandre de Moraes autorizou uma série de diligências — primeiro, a tomada de depoimentos e, depois, quebras de sigilo telefônico e telemático

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3 Em uma das oitivas, Mauro Cid disse à PF ser responsável por qualquer “demanda direta e imediata em assuntos oficiais e pessoais” do presidente. Por isso, segundo explicou, cuidou da logística da entrevista em que Bolsonaro falou abertamente sobre o material sigiloso e, depois, acionou o irmão, que mora nos Estados Unidos, para criar um link para a divulgação do inquérito nas redes

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4 A quebra do sigilo telemático de Mauro Cid confirmou as declarações dele. E a PF foi além: revelou conversas, fotos e áudios nos quais o tenente-coronel trata com outros funcionários da Presidência de transações financeiras relacionadas a Bolsonaro, operadas em depósitos fracionados e saques em dinheiro, algo incomum em um mundo digital

5 Entre as movimentações financeiras, a PF encontrou, por exemplo, pagamentos de planos de saúde e depósitos fracionados
para uma tia de Michelle, que, por vezes, trabalha como babá da filha da primeira-dama e de Bolsonaro, Laura. O repasse mensal a ela é de R$ 2.840

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6 Com base nas informações, a PF pediu a quebra do sigilo bancário de Mauro Cid a fim de identificar a origem do dinheiro e a possibilidade de uso de recursos públicos para o pagamento de contas pessoais de Bolsonaro e Michelle, como cabelereiro, manicure e compra de roupas, entre outras coisas. Moraes autorizou a quebra do sigilo

7 O Palácio do Planalto confirmou as informações, mas nega irregularidades, alegando que “os pagamentos de contas particulares são realizados com recursos exclusivos da conta pessoal” de Bolsonaro e não envolveu saques do cartão corporativo da Presidência

8 O caso chama a atenção porque o clã Bolsonaro é envolto por escândalos de rachadinha e funcionários fantasmas. Flávio e Carlos, os filhos 01 e 02 do presidente, são formalmente investigados pela suposta participação em esquemas deste tipo

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