Jair Bolsonaro cometeu uma grosseria e uma traição ao mandar publicar no Diário Oficial de hoje a indicação do desembargador piauiense Kassio Marques à vaga de Celso de Mello no STF. 

A grosseria se deve ao fato de que Celso de Mello, hoje decano da corte, ainda tem onze dias de trabalho antes de se aposentar, no dia 13 de outubro. Até hoje, nenhum presidente havia se antecipado dessa maneira para fazer uma nomeação. 

É uma questão de liturgia e civilidade, mais ainda que de tradição. Um presidente não deve agir como se quisesse enxotar um ministro do STF.

Mas Bolsonaro não se aguenta. Ele certamente odeia Celso de Mello, que ousou decidir que o seu depoimento, na investigação da suposta interferência do presidente na PF, deveria ser presencial e não por escrito. Mais uma vez, pôs o seu orgulho ferido à frente daquilo que a Presidência demanda.

Nem mesmo Donald Trump, nos Estados Unidos, conseguiu ser tão mesquinho. Ele também escolheu às pressas a sucessora de Ruth Bader Ginsburg na Suprema Corte americana. Mas esperou o enterro da juíza falecida para fazer o anúncio. 

Suponho que algum espírito de porco poderia até mesmo impugnar a indicação publicada no DO. A rigor, a vaga no STF ainda não existe. Nem mesmo em Brasília dois corpos conseguem ocupar o mesmo cargo ao mesmo tempo. Pelo menos não assim, à vista de todos. 

Quanto à traição, obviamente ela foi aos fundamentalistas da ultra-direita, aqueles que esperavam um nome terrivelmente evangélico ou terrivelmente ideológico. Até com o celular  desligado dá para ouvir a gritaria nas redes sociais. 

Kassio Marques é católico. Parece ser também bastante pragmático. Ascendeu aos tribunais  superiores com a bênção do PT e chega ao Supremo depois de seduzir um direitista. Se fosse político em vez de juiz, provavelmente pertenceria ao Centrão. Amigos não lhe faltam nessa área, a começar pelo conterrâneo Ciro Nogueira. 

Se servir de consolo aos direitistas, que hoje acham que Bolsonaro não tem valores, eu lembraria que ele tem família (coisa sagrada, pô) e continua tendo um projeto de poder. 

Certamente essas duas coisas pesaram em sua decisão. Lembremos que o padrinho de Kassio Marques é Flávio Bolsonaro, o filho do presidente enrolado na história das rachadinhas. Lembremos também que algumas ações podem abreviar a permanência do capitão no Planalto, como a já mencionada investigação sobre interferência na PF, o inquérito das fake news, e suspeita de financiamento ilegal de sua candidatura, apurada no TSE. 

Nessas circunstâncias, nada mais natural que desejar ter um “parça” no STF. Primeiro a gente garante o mandato e a reeleição, depois a gente transforma o Brasil numa teocracia, tá ok? 

Vai dar certo? O histórico de indicações para o Supremo recomenda o ceticismo.

Bolsonaro pode achar que a vaga é “dele”, como disse na live desta quinta-feira. Na verdade, só lhe cabe a indicação. A vaga mesmo é de Kassio Marques, que tem 48 anos e pode passar os próximos 27 no Supremo. Muito rapidamente ele vai perceber que é a sua biografia que está em jogo, e isso pode se sobrepor à gratidão que talvez sinta pelo presidente. 

Foi assim com Joaquim Barbosa, Ayres Britto, Dias Toffoli, Luiz Fux, Luiz Fachin. Todos chegaram ao STF sob a suspeita de serem agentes infiltrados do PT, mas acabaram sendo algozes do partido nos julgamentos do mensalão e em diversas decisões do petrolão. Nada fere mais a honra de um ministro do Supremo do que a suspeita de ser uma arma de aluguel. 

Se Kassio Marques honrar seu novo cargo e for independente, há motivos para considerá-lo uma boa escolha. Ele se diz adepto de um estilo mais contido de atuação judicial. Vem a calhar. 

Ao contrário do que imagina Bolsonaro, o Supremo não deve ser um espectador passivo das ações dos outros poderes. Cabe à corte fazer o controle de constitucionalidade das leis aprovadas no Congresso e dos atos do Executivo. 

No entanto, a força das decisões do STF decorre de serem tomadas em conjunto – de responderem à lógica da colegialidade. Em vez disso, o que se tem visto com frequência é a ação solitária de ministros nas chamadas decisões monocráticas. Muitos se comportam como se fossem governantes de toga. 

Mais do que sentenças isoladas em material penal, de costumes ou o que for, essa atomização traz os maiores desgastes à legitimidade da corte. Qualquer juiz disposto a combater essa tendência é bem vindo.