Os mais experientes hão de lembrar que Volterra é a cidade toscana onde se passa Vagas Estrelas da Ursa (1965), a pungente tragédia familiar dirigida por Luchino Visconti. Volterra é também a comuna onde vive a escritora Prêmio Nobel Maria Linde (Krystyna Janda), que há muitos anos buscou na Itália a paz não encontrada na Polônia, sua terra natal. O filme, a exemplo do de Visconti, ostenta um enganador título poético, Doce Entardecer na Toscana, já em cartaz no Brasil, e é dirigido pelo também polonês Jacek Borcuch.

Convém lembrar que Krystyna Janda é atriz fetiche de um diretor como Andrzej Wajda e um ícone na Polônia. Tem potência de leoa na tela. De fato, ela surge como uma força da natureza no papel da poeta Maria Linde, que festeja a notícia de ter sido agraciada com o maior prêmio mundial da literatura. Independente, mandona e autossuficiente, ela é um sol em torno do qual gravitam planetas plebeus, como seu marido italiano (Antonio Catania), filhos e netos. Quem orbita mais de perto do astro Maria é o jovem egípcio Nazeer (Lorenzo de Moor), dono de um restaurante local e com idade para ser neto da poeta. Aos 60 anos, aproximadamente, Maria é dona do seu destino e da sua sexualidade.

A paisagem é bucólica, a família vive num aprazível sítio nos arredores de Volterra, mas as autoridades policiais advertem para a presença de imigrantes, eventualmente perigosos, rondando nas imediações. A Itália, que no passado mandou populações inteiras para os quatro cantos do planeta, hoje teme e hostiliza quem busca refúgio em seu território. Um contradição histórica que tem virado tema de muitos filmes, a começar pelo grande L’America – Tempo de Chegar, de Gianni Amelio.

A tensão sobe quando um dos netos de Maria desaparece sem mais nem menos. Cresce mais ainda quando, homenageada pela cidade, Maria faz um discurso considerado impertinente ao receber a distinção do município. Logo ela descobre que a sinceridade talvez não seja uma qualidade das mais apreciadas em nosso tempo. Menos ainda a originalidade. Tivesse se limitado a palavras protocolares, aquelas que nada dizem, Maria teria evitado um caminhão de problemas. Mas resolveu comentar, a seco, e de forma inesperada, um ato terrorista recente, que havia indignado as pessoas de bem.

Essa história um tanto estranha e exemplar é bem conduzida pelo diretor Jacek Borcuch. Vale-se do carisma de Krystyna Janda para encarnar uma mulher admirável, porém representante de tudo o que não se tolera hoje.

Ainda menos no ambiente provincial em que resolveu viver. Sem dúvida, há um preço a pagar pela independência de espírito. Sempre houve. Mas existem épocas em que a opinião pública, digamos assim, se considera no direito de julgar e condenar condutas alheias com maior força e veemência. A nossa é uma delas.

Doce Entardecer na Toscana passa por vários temas interessantes, entre os quais a liberação do desejo feminino. E isso numa mulher tecnicamente na chamada terceira idade, um sujeito ainda meio tabu das nossas artes, que preferem circunscrever o domínio do sexo aos jovens.

Também se coloca um limite nessa idealizada postura liberal do presente, ao fazer Maria enfrentar um peso desproporcional por sua disposição de usar o corpo e a mente como bem deseja. Ela parece seguir o “mandamento” famoso de Jacques Lacan: não se deve renunciar ao seu desejo. Mas este é um caminho difícil, como sabia o psicanalista. Troca-se a neurose pela condenação alheia. Com alguma vantagem: melhor a desaprovação externa que a culpa interiorizada por não fazer o que se deseja.

Maria é suficientemente independente para tomar um amante bem mais jovem do que ela e deixar para o marido um bilhete tão sutil quanto sincero. Ela escreve ao companheiro que ele, depois de tantos anos de casamento, havia se tornado um ser silencioso. Desaparecera. Movia-se pela casa com seus chinelos confortáveis de modo que ninguém o ouvisse. E, dessa forma, sumira de maneira discreta do cotidiano de Maria. “Volte a fazer ruído, eu te suplico”, ela escreve. Existe maneira mais incisiva – e poética – de queixar-se do tédio matrimonial?

De forma sutil, Doce Entardecer na Toscana é também uma reflexão sobre as relações entre a arte e a política. Ao dispensar o Prêmio Nobel, como fizera em 1964 o filósofo francês Jean-Paul Sartre, Maria recusa-se a se transformar em instituição e medita sobre a dimensão política de sua arte. Reflete: o que resta de poder à poesia num mundo convulsionado e à beira do colapso? (E olhe que, na época em que o filme foi feito, nem se cogitava do surgimento de uma pandemia viral que, para além dos seus óbvios desafios médicos, encerra toda uma simbologia ainda por estabelecer acerca do crepúsculo de uma era.)

De toda forma, Maria investe-se dessa função um tanto sacrificial do artista, a de apontar o mal-estar profundo do seu tempo, custe o que custar. Imola-se em nome do que entende por justo. Fala o que ninguém deseja ouvir, ou ler, ou saber. O público leigo respeita o artista em sua glória, como alguém que “chegou lá” e recebe as homenagens do mundo.

Espera-se dele o comportamento que seria o de qualquer um de nós caso tivesse alcançado o ápice – o acolhimento generoso da fama e a partilha dessa vitória com os que o aplaudem. Maria encarna a recusa a essa posição simbólica do artista burguês, consagrado. Ela prefere apontar as mazelas a receber a homenagem e curvar-se à plateia. Seu ato de rejeição se reveste de uma radicalidade política pouco usual. Por isso mesmo, impossível de ser bem recebida.

Se Maria lamenta a monotonia do cotidiano com o marido, protesta também contra os humores de um mundo que se tornou sem sentido. A tal ponto que um ato terrorista pode lhe parecer algo como um grito de alerta, e mesmo uma “obra de arte”. Como se, em tempos de desespero, a arte propriamente dita desaparecesse em face da ação direta, violenta ou não. Pelo menos é assim que a sensibilidade poética de Maria interpreta. Ela fala do continente outrora considerado o berço da civilização: “Mas hoje a Europa talvez mereça ruir sob o peso de sua própria impotência”, reflete, para pasmo da plateia. E conclui seu discurso de forma incisiva: “Não acredito mais no peso das palavras. Talvez devêssemos nos exprimir de maneira diferente: pela desobediência”.

A figura paradoxal de Maria Linde faz de Doce Entardecer na Toscana um filme de ideias. Longe de ser perfeito, tem o mérito de manter a ambiguidade em torno dessa poeta laureada com vocação de artista trágica. E lembra que um entardecer, ainda que doce e belo, significa também o fim de uma jornada, término de um dia que não retorna jamais.

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.