Choques elétricos, agressões físicas, ameaças de morte… O pesadelo de mais de 200 vítimas do trabalho análogo à escravidão em vinícolas no sul do Brasil chocou todo o país, onde o problema atinge diversos setores de atividade.

“Ultimamente temos notificado uma quantidade cada vez maior de trabalhadores em situação análoga à escravidão”, afirma à AFP o procurador Italvar Medina, vice-coordenador nacional da Coordenadoria Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo (Conaete).

O número de pessoas resgatadas do trabalho análogo à escravidão mais que dobrou em dois anos, passando de 936 em 2020 para 2.075 em 2022, segundo dados oficiais da inspeção do trabalho.

E o número do ano passado nunca havia sido tão alto desde 2013 (2.808).

O ano de 2023 começou com o caso emblemático de Bento Gonçalves, no Rio Grande do Sul, onde 207 pessoas trabalhavam na colheita de uvas em condições extremamente degradantes nos vinhedos.

Elas foram libertadas há duas semanas, graças à denúncia de um grupo que conseguiu escapar.

Segundo o Ministério do Trabalho, os trabalhadores haviam sido recrutados a 3.000 quilômetros de distância, na Bahia, por uma empresa terceirizada que fornecia mão de obra para três grandes vinícolas da região de Bento Gonçalves, conhecida principalmente pelos espumantes vendidos em todo o Brasil, mas também no exterior.

– Dívidas impagáveis –

Depoimentos arrepiantes divulgados pelo ministério ou publicados em veículos de imprensa mencionam choques elétricos para acordar trabalhadores de madrugada, ataques com cassetetes ou vassouras e ameaças como: “baiano bom é baiano morto”.

Os trabalhadores ficavam amontoados num galpão e a comida que lhes serviam nos vinhedos ficava azeda, após passar horas debaixo do sol.

Para conseguir mais alimentos, eles tinham que comprá-los no local a preços proibitivos, endividando-se tanto que não recebiam o salário e eram impedidos de voltar para casa.

As três vinícolas disseram repudiar categoricamente o trabalho em condições análogas à escravidão e culparam as empresas de fornecimento de mão de obra.

“Não é um caso isolado, é uma consequência do modelo de economia que mata”, afirma Andrei Thomaz Oss-Emer, agente da Comissão Pastoral da Terra, associação católica que defende os trabalhadores rurais.

“Muitas empresas do setor alimentício praticam esse modo de contratação, com terceirização e precarização do trabalho. Terceirizam o trabalho ao ponto de torná-lo análogo à escravidão”, acrescenta este doutorando em Filosofia.

– “Racismo estrutural” –

Para Maurício Krepsky, coordenador Nacional da Divisão de Erradicação do Trabalho Escravo do Ministério do Trabalho, o caso das vinícolas de Bento Gonçalves “ascende o alerta”.

Isso mostra que “essas violações podem ocorrer em qualquer setor, até naqueles que não tinham histórico com essa gravidade”, como as vinícolas.

Este início de ano também foi marcado por um caso bem menos divulgado, envolvendo 139 trabalhadores de uma usina de processamento de cana-de-açúcar em Goiás.

As denúncias de trabalho análogo à escravidão no Brasil são registradas principalmente em atividades agrícolas, especialmente da cana-de-açúcar e do café, mas também foram identificados casos em áreas urbanas, principalmente nos setores têxtil ou de construção.

Segundo Krepsky, esse problema está intimamente ligado ao “racismo estrutural”, sendo a grande maioria dos trabalhadores envolvidos negra, no último país das Américas a abolir a escravidão, em 1888.

“Não é só porque querem economizar não cumprindo a lei, querem lucrar em cima disso. As pessoas são tratadas como trabalhadores de segunda categoria em razão ou da cor da pele ou da origem”, insistiu Krepsky.

Para Italvar Medina, “há no Brasil uma cultura de desvalorização da mão de obra, do trabalho braçal”.

“Uma vez os trabalhadores retirados, é preciso ter um acompanhamento contínuo, com apoio psicológico, e para ajudá-los a ter uma reinserção no mercado formal de trabalho, e evitar que sejam novamente explorados”, analisa o procurador.

Mas as autoridades competentes carecem de recursos: o último concurso para recrutar fiscais do trabalho data de 2013.

“Hoje são menos de 2.000 auditores fiscais do trabalho em todo o país. Para atender todo o país é pouquíssima gente (…) e os empregadores podem ter se valido talvez dessa sensação de impunidade”, conclui Krepsky.

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