O autoritarismo sempre esteve presente na vida do brasileiro e este talvez seja o maior entrave para o fortalecimento da democracia no nosso país. Arrisco-me a dizer que o autoritarismo está presente na nossa sociedade desde que os colonizadores aqui chegaram e dominaram aqueles que aqui viviam. E de lá até os dias de hoje, a nossa construção de ordem política e a formação do povo brasileiro têm como pano de fundo o autoritarismo. Basta pesquisarmos um pouco sobre a época do Império e da Primeira República ou os anos que sucederam a Revolução de 1930 e a Era Vargas. Já naqueles tempos havia a sensação de que vivíamos num país onde o autoritarismo estava enraizado. Hoje, na segunda década do século XXI, essa sensação ainda persiste. Triste.

Eu nasci dois meses depois de os militares decretarem o AI-5. Sou filho de um militar com uma dona de casa do subúrbio do Rio de Janeiro, de família católica, tradicional e conservadora. Minha sorte foi ter crescido num ambiente com muitos livros dos mais variados autores. Logo fui me dando conta de que a vida não era aquela coisa certinha, bonitinha, perfeita que a hipocrisia de uma parcela da elite queria que eu aceitasse como verdade absoluta. Fui entender que o regime militar de 1964 foi golpe e não revolução já adolescente, aos 13 anos, quando li Feliz Ano Velho, livro do Marcelo Rubens Paiva, em que ele relata o acidente que o deixou tetraplégico tendo como pano de fundo a ditadura militar que desapareceu com o corpo do seu pai, o deputado federal Rubens Paiva.

Eu já tinha 16 anos quando o Colégio Eleitoral se reuniu e Tancredo Neves foi eleito indiretamente presidente da República depois de mais de 20 anos de ditadura. Naquele mesmo ano eu li um livro chamado Brasil Nunca Mais, que na verdade é fruto de um projeto encabeçado pelo arcebispo franciscano dom Paulo Evaristo Arns e pelo rabino Henry Sobel. A obra é uma importante documentação de um dos períodos mais terríveis da nossa história e foi fundamental para eu entender o horror de uma época que se passava havia pouco e teve papel primordial para a identificação e denúncia dos torturadores da ditadura militar. Perseguições, assassinatos, desaparecimentos e torturas, estava tudo lá muito bem documentado, assim como as atrocidades praticadas nas delegacias, nas mais variadas unidades militares do País e em locais clandestinos mantidos pelo aparelhamento repressivo das Forças Armadas brasileiras.

Eu entrevistei a jornalista Miriam Leitão ainda em 2014, quando veio à tona a história de que ela havia sido presa e torturada quando estava grávida de seu primeiro filho. Foi em 1972 que Miriam foi torturada nua, trancada numa cela com uma cobra e apanhou de militares numa das muitas atrocidades que aconteciam nos porões da ditadura. O martírio de Miriam, divulgado à época no site do Observatório da Imprensa, ficou por muito tempo restrito à família e a poucos amigos. “Nunca achei que merecesse muito destaque. Acontece que tive muita sorte. Saí viva. Minha história teve final feliz”, desabafou a jornalista durante a entrevista concedida a mim e publicada pelo jornal O Dia

No domingo de Páscoa, Miriam publicou em sua coluna áudios das sessões do Superior Tribunal Militar (STM) que comprovam ter havido tortura durante o regime militar. O material, que consta nas mais de 10 mil horas de gravações feitas a partir de 1975 pelo próprio STM, causou indignação em muitos, mas foi motivo de deboche e ironia dos militares, que hoje estão de volta ao poder com todo aquele autoritarismo que lhes é peculiar. O vice-presidente general Mourão riu da possibilidade de investigar os militares por tortura na ditadura e perguntou se iam “trazer os caras de volta do túmulo”, já o presidente do STM desdenhou da revelação, disse que a Corte ia ignorar o ocorrido e que “os áudios não estragaram a Páscoa de ninguém”. Estragaram sim, general, e acabaram com a vida de muitos. Não adianta esconder.