06/05/2022 - 9:30
O simples fato de saber que cartas eram enviadas do campo de concentração de Auschwitz é algo chocante. A troca de correspondência em uma prisão pressupõe um respeito mútuo mínimo que contradiz a própria existência desse infernal cativeiro no sul da Polônia. Mais de sete décadas após o fim da Segunda Guerra, os detalhes sobre o extermínio de judeus pelas forças nazistas continuam a nos surpreender. Eu te Escrevo de Auschwitz – As Cartas Inéditas dos Prisioneiros do Campo de Concentração, da historiadora israelense Karen Taieb, revela uma nova faceta dessa nefasta realidade: a Brief-Aktion, a “Operação Cartas”. Ao menos cinco mil judeus franceses foram autorizados a escrevê-las sob vigilância dos soldados nazistas. Engana-se quem pensa que o ato embutia algum tipo de humanidade. O processo tinha três objetivos: o primeiro era tranquilizar os países da Europa Ocidental, ao fingir que os prisioneiros eram tratados com dignidade no decorrer da guerra, o que significava, por sua vez, que os alemães mereciam ser tratados da mesma forma. O segundo era acalmar os próprios presos; como nem todos sabiam que as cartas eram feitas sob coação, imaginar que havia algum tipo de contato com o mundo exterior dava a impressão de que nem tudo estava perdido. O mais cruel, no entanto, era o objetivo final: ao escrever para os endereços verdadeiros de parentes e amigos, os judeus de Auschvitz muitas vezes acabavam denunciando os seus esconderijos.
No total, 76 mil judeus franceses foram assassinados por meio da “Solução Final”, eufemismo para as mortíferas câmeras de gás. As mensagens enviadas diziam praticamente a mesma coisa: “estamos bem de saúde”, “mandamos lembranças” e outras expressões sem valor real. O mais cruel é saber que muitos dos autores eram enviados para a morte logo após entregarem as cartas.
Apesar da operação Brief-Aktion, houve um pequeno número de cartas clandestinas que conseguiam chegar ao seu objetivo sem passar pelas mãos dos nazistas. Eram contrabandeadas por prisioneiros que exerciam alguma atividade administrativa, e que ajudavam os demais companheiros de sofrimento Algumas delas descreviam a realidade, como revela o trecho de autoria de Paul Cerf, em mensagem a lápis redigida em um pedaço de papel, em 13 de novembro de 1943, à esposa Victorine: “Minha querida e meu pequenino, quando vocês receberem este bilhete, já terei partido para um destino desconhecido. Penso em meu pequeno Bertrand, que está crescendo sem o pai. Tenho a firme esperança de revê-los, mas se o bom Deus não permitir isso, orarei por vocês e desejarei tudo que um marido e um pai pode desejar”. Apesar do tom de despedida, uma outra mensagem escrita dois anos depois, em 10 de novembro de 1945, prova que ele estava certo ao manter a expectativa positiva: “Minha querida, meu pequeno Bertrand. Envio mais esse bilhete para dizer que fui liberto pelo glorioso Exécito Vermelho. Estou bem de saúde, mas muito cansado. Amanhã é meu aniversário e aguardo a repatriação. Estou sempre pensando em vocês, beijos de todo o meu coração.”
Uma autobiografia da bibliotecária
Outro relato impressionante do cotidiano no campo de concentração virou uma autobiografia: em A Verdadeira História da Bibliotecária de Auschwitz, a sobrevivente Dita Polach – hoje com o sobrenome Kraus – narra em primeira pessoa o seu papel como guardiã dos preciosos livros que os colegas de cativeiro se esforçavam para esconder dos guardas. Em meio a todo o terror há tanto um começo quanto um final feliz: das memórias da infância em Praga, antes da invasão alemã, à libertação pelos Aliados, ao final da guerra. Foi quando deu início a uma nova vida. Mudou-se para Israel, casou-se com outro sobrevivente, Otto B. Kraus, e viveu até os 90 anos cercada de filhos, netos e bisnetos. Foi com essa idade, em 2020, que decidiu compartilhar sua história.