ESPERANÇA Correspondências
entre 1942 e 1945: muitos eram enviados à morte após entregá-las (Crédito:Divulgação)

O simples fato de saber que cartas eram enviadas do campo de concentração de Auschwitz é algo chocante. A troca de correspondência em uma prisão pressupõe um respeito mútuo mínimo que contradiz a própria existência desse infernal cativeiro no sul da Polônia. Mais de sete décadas após o fim da Segunda Guerra, os detalhes sobre o extermínio de judeus pelas forças nazistas continuam a nos surpreender. Eu te Escrevo de Auschwitz – As Cartas Inéditas dos Prisioneiros do Campo de Concentração, da historiadora israelense Karen Taieb, revela uma nova faceta dessa nefasta realidade: a Brief-Aktion, a “Operação Cartas”. Ao menos cinco mil judeus franceses foram autorizados a escrevê-las sob vigilância dos soldados nazistas. Engana-se quem pensa que o ato embutia algum tipo de humanidade. O processo tinha três objetivos: o primeiro era tranquilizar os países da Europa Ocidental, ao fingir que os prisioneiros eram tratados com dignidade no decorrer da guerra, o que significava, por sua vez, que os alemães mereciam ser tratados da mesma forma. O segundo era acalmar os próprios presos; como nem todos sabiam que as cartas eram feitas sob coação, imaginar que havia algum tipo de contato com o mundo exterior dava a impressão de que nem tudo estava perdido. O mais cruel, no entanto, era o objetivo final: ao escrever para os endereços verdadeiros de parentes e amigos, os judeus de Auschvitz muitas vezes acabavam denunciando os seus esconderijos.

Eu te Escrevo de Auschwitz Karen Taieb
Planeta
Preço: R$ 40

No total, 76 mil judeus franceses foram assassinados por meio da “Solução Final”, eufemismo para as mortíferas câmeras de gás. As mensagens enviadas diziam praticamente a mesma coisa: “estamos bem de saúde”, “mandamos lembranças” e outras expressões sem valor real. O mais cruel é saber que muitos dos autores eram enviados para a morte logo após entregarem as cartas.

Apesar da operação Brief-Aktion, houve um pequeno número de cartas clandestinas que conseguiam chegar ao seu objetivo sem passar pelas mãos dos nazistas. Eram contrabandeadas por prisioneiros que exerciam alguma atividade administrativa, e que ajudavam os demais companheiros de sofrimento Algumas delas descreviam a realidade, como revela o trecho de autoria de Paul Cerf, em mensagem a lápis redigida em um pedaço de papel, em 13 de novembro de 1943, à esposa Victorine: “Minha querida e meu pequenino, quando vocês receberem este bilhete, já terei partido para um destino desconhecido. Penso em meu pequeno Bertrand, que está crescendo sem o pai. Tenho a firme esperança de revê-los, mas se o bom Deus não permitir isso, orarei por vocês e desejarei tudo que um marido e um pai pode desejar”. Apesar do tom de despedida, uma outra mensagem escrita dois anos depois, em 10 de novembro de 1945, prova que ele estava certo ao manter a expectativa positiva: “Minha querida, meu pequeno Bertrand. Envio mais esse bilhete para dizer que fui liberto pelo glorioso Exécito Vermelho. Estou bem de saúde, mas muito cansado. Amanhã é meu aniversário e aguardo a repatriação. Estou sempre pensando em vocês, beijos de todo o meu coração.”

“Após 14 meses, tenho a alegria de escrever livremente a vocês. Estou cansada, quando estivermos juntos contarei o que sofri” Mireille Minces, prisioneira (foto ao alto, à esq.)

Uma autobiografia da bibliotecária

Outro relato impressionante do cotidiano no campo de concentração virou uma autobiografia: em A Verdadeira História da Bibliotecária de Auschwitz, a sobrevivente Dita Polach – hoje com o sobrenome Kraus – narra em primeira pessoa o seu papel como guardiã dos preciosos livros que os colegas de cativeiro se esforçavam para esconder dos guardas. Em meio a todo o terror há tanto um começo quanto um final feliz: das memórias da infância em Praga, antes da invasão alemã, à libertação pelos Aliados, ao final da guerra. Foi quando deu início a uma nova vida. Mudou-se para Israel, casou-se com outro sobrevivente, Otto B. Kraus, e viveu até os 90 anos cercada de filhos, netos e bisnetos. Foi com essa idade, em 2020, que decidiu compartilhar sua história.