MISTÉRIO Origem desconhecida: há objetos ainda não identificados pela ciência (Crédito:JEAN-CHRISTOPHE VERHAEGEN)

Na França, país conhecido pela valorização da arte e sede de um dos maiores acervos culturais da humanidade, um caso desperta a atenção dos historiadores e da sociedade em geral. O governo francês anunciou que mais de 27 mil artefatos raros foram recuperados. Engana-se, porém, quem imagina que essa importante descoberta foi feita por pesquisadores em sítios arqueológicos distantes e exóticos. Segundo o comunicado oficial, o autor dos roubos foi identificado como “Patrice T”, cidadão francês que hoje mora na Bélgica. Ele afirma ter encontrado, “por acaso”, mais de 14 mil moedas do império romano em um terreno que havia comprado. O relato despertou a desconfiança dos especialistas, que aprofundaram as investigações e foram surpreendidos com a quantidade de relíquias achadas.
“As peças estavam localizadas em uma camada de terra formada no período da Idade Média. Algumas moedas podem excepcionalmente surgir assim, mas, 14 mil, não”, disse Marleen Martens, arqueóloga que acompanha o caso.

Impressionados com o nível de conservação dos itens, os estudiosos vasculharam outras propriedades de Patrice. “Concluímos que era impossível que as moedas tivessem vindo daquela área”, ressaltou Marleen. O total de peças identificadas chegou a mais de 27 mil itens – alguns com origem ainda desconhecida da ciência. A situação reacendeu o debate sobre o que pode ou não ser considerado roubo, principalmente em relação a tesouros culturais.

“Os franceses se declaram defensores da história, mas são incapazes de devolver artefatos arqueológicos que não são seus” José Roberto Pellini, professor da UFMG

Na Bélgica, o uso de detectores de metal para vascular o solo é liberado, mas na França o aparelho é restrito apenas às pesquisas científicas. Sendo assim, mesmo que Patrice tenha encontrado as moedas em seu terreno, os itens pertencem ao Estado. “A França é referência em leis de conservação de patrimônio”, afirma Kai Lehmann, professor de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo (USP). “A Europol, a polícia europeia, é responsável por localizar e prender criminosos que violem as regras. As leis funcionam, mas é preciso saber como aplicá-las.”

Embora seja cidadão francês, Patrice T não deverá ter qualquer vantagem perante os órgãos reguladores do país. “O autor da infração será punido com pena de prisão e centenas de milhares de euros em multas”, disseram os ministros Olivier Dussopt, incumbido das Contas Públicas, e Bruno Le Maire, da Economia, Finanças e Recuperação. “Esta é uma mensagem clara para aqueles que, para proveito e prazer egoísta, nos privam de nosso patrimônio comum e apagam trechos inteiros de nossa história”, completam.

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Colonização

Para Jose Roberto Pellini, professor de arqueologia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), a França vai contra seu discurso de proteção quando se trata de devolver tesouros que não são seus, postura cada vez mais comum em países com passado colonizador. “Os franceses se declaram defensores da história, mas são incapazes de retirar de seus museus e devolver artefatos arqueológicos que não são seus”, afirma Pellini.

Rodrigo Rainha, historiador da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), ressalta que diversos processos de repatriação de bens já foram enviados para a Organização das Nações Unidas (ONU). Potências com histórico imperialista, como França, Alemanha e Inglaterra, não costumam atender a todos esses pedidos. As alegações são de que durante a colonização, as obras de arte teriam sido degradadas se não tivessem sido retiradas dos países menos abastados onde foram encontradas. “O conceito de roubo parece ser muito relativo quando falamos de artefatos encontrados”, afirma o historiador.

Pellini, que já atuou em expedições no Egito, alega que as leis brasileiras são mais avançadas do que as francesas em relação aos patrimônios históricos. Além disso, critica as condutas colonialistas de países europeus, que, ainda hoje, seguem desrespeitando a cultura de outras nações. “Os franceses já disseram que os artefatos egípcios estavam mais conservados no museu do Louvre do que no museu do Cairo”, diz. “Isso é muito grave.”

Vagner Porto, arqueólogo da USP, destaca o interesse financeiro dos grandes museus, que faturam milhões com o turismo. “O museu britânico aluga a área que abriga os lendários Frisos do Parthenon para eventos como festas e casamentos. Imagine o lucro que isso gera”, diz. “A Grécia reivindica as peças há cem anos, mas os britânicos não abrem mão. É impensável imaginar que algum dia eles vão devolver.” A história deveria estar disponível a todos, não apenas aos turistas que podem visitar as antigas potências colonizadoras.