O livro “Arrancados da Terra” não é sobre um herói grego, mas também é uma grande odisseia. Ao contrário do clássico de Homero, o novo romance de Lira Neto narra a jornada não de um homem, mas de um povo. Em um ambicioso projeto de pesquisa e reconstituição histórica, a obra contaa saga dos judeus desde a perseguição pela Inquisição na Península Ibérica até a chegada de seus primeiros representantes em Nova York, cidade onde fica hoje a maior comunidade judaica fora de Israel.

Apesar de essa narrativa começar na Europa e terminar na América do Norte, é a escala no Nordeste brasileiro que torna o livro ainda mais fascinante. Tudo se inicia em Portugal, onde os judeus já viviam desde que a região estava sob o domínio do Império Romano. Em 1496, antes da Inquisição, decretada em 1536, o rei Manuel I decidiu expulsá-los. Sinagogas foram interditadas e os livros em hebraico, proibidos. Fugiram para a Holanda, nação em que era proibido perseguir indivíduos por orientação religiosa. Esse liberalismo deu a Amsterdã um ar cosmopolita e o espaço para artistas como Rembrandt e Vermeer.

Em 1624, a pujança econômica permitiu à Holanda desafiar Portugal e Espanha. De olho no lucro com pau-brasil, açúcar e ouro, uma frota militar e os navios da Companhia das Índias Ocidentais foram enviados para invadir Salvador e Recife e extrair suas riquezas. Com o sucesso da empreitada, a imigração holandesa para o Brasil foi incentivada – e muitos membros da comunidade judaica decidiram cruzar o Atlântico para recomeçar a vida mais uma vez. Pouco tempo depois, porém, eles passaram a inspirar antipatia graças ao rápido sucesso econômico: chegaram a deter 91% dos contratos oficiais como coletores de taxas e impostos.

Quando o conde Mauricio de Nassau, o administrador holandês, voltou para a Europa, o brasileiro Felipe Camarão liderou uma eficiente força formada por brancos, negros e índios e expulsou os invasores. Sem os holandeses, o ambiente ficou novamente desfavorável para os seguidores da Lei de Moisés. Embarcações logo atracaram no porto do Recife para levar as 150 famílias que optaram por voltar para a Holanda. Um desses navios, o Valk (“Falcão”, em holandês) perdeu-se no caminho devido a uma tormenta. Levando 23 pessoas, entre adultos e crianças, a nau foi assaltada por piratas e resgatados por uma fragata francesa, que os levou para a Jamaica. Como a ilha era colônia espanhola – e, por isso, afetada pelas leis da Inquisição –, o grupo foi impedido de desembarcar.

No porto, contrataram outro capitão francês, Jacques de La Motte, para os levar a um pequeno entreposto comercial holandês no norte das Américas. Chegaram finalmente à modesta Nova Amsterdam – hoje, a ilha de Manhattan, em Nova York. Oito meses após terem saído de Recife, os judeus chegavam à terra prometida.

Pesquisa histórica

A incrível narrativa de Lira Neto traz histórias pessoais e fatos políticos, um jogo estilístico que alterna personagens e contextos. “A história pode e deve ser construída pela observação da conjunção dialética entre as vontades individuais e as forças gerais que movem a sociedade”, explica o autor. Apesar de o foco estar nas origens da diáspora judaica nas Américas, Lira Neto acredita que um dos protagonistas do livro é o Brasil. “Abordei as tensões padecidas pelos migrantes e refugiados — os ‘desterrados’, os ‘desenraizados do mundo’ — porque esse é um tema que ainda persiste incômodo e atual, e que tem muito a dizer ao nosso País hoje.” Segundo o autor, o livro tem recebido boa acolhida pela comunidade judaica, principalmente nos setores mais progressistas.

“Não há de se ter vergonha da diáspora. Ninguém é arrancado de sua terra por decisão própria.”

De Lisboa a Nova York, passando por Recife