No mapa, o Rio de Contas é uma linha azul fininha que divide as cidades de Ubaitaba e Aurelino Leal, no sul da Bahia, distantes a 379 km de Salvador. De perto, essa linha vira uma avenida fluvial que define a vida na região. Anos atrás, meninos e adolescentes se ofereciam para remar as canoas que faziam a travessia do rio, pois não tinham o dinheiro da passagem – hoje, R$ 2. De canoeiros a canoístas, foi um pulo. Ou um mergulho. Dos cinco atletas que se preparam para os Jogos do Rio, três são da região, um deles é o bicampeão mundial Isaquias Queiroz. Dos últimos dez torneios nacionais por equipes, oito foram vencidos por ubaitabenses. Além disso, Jefferson Lacerda, o pioneiro da canoagem brasileira em Olimpíadas, também é de lá.

Isso ainda não existe nos mapas, mas Ubaitaba é a capital brasileira da canoagem.

Hoje, quase 60 alunos participam da escolinha gratuita da Associação Cacaueira de Canoagem. Existem dois pré-requisitos para entrar no curso: saber nadar e ir bem na escola. A cada trimestre, os professores da canoagem visitam a escola e também analisam o boletim de cada aluno. Se o aluno vai mal, é afastado por um período. “Tia, a gente já pode colocar o barco na água?”, pergunta Yuri Silva dos Santos, prata na categoria até 14 anos no Campeonato Brasileiro.

Até chegar à margem, meninos e meninas a partir dos oito anos carregam nos ombros barcos de 10 quilos. Os corpinhos mirrados, rascunhos de atletas, envergam, mas não quebram. O sonho de ser como Isaquias vai no ombro também e ajuda a equilibrar o peso.

Docentes e alunos tiram leite de pedra. A atleta, professora e presidente da associação Camila Lima pergunta se a reportagem do jornal O Estado de S. Paulo esperava encontrar raias olímpicas para demarcar o espaço dos canoístas. Jefferson Lacerda, integrante da primeira delegação brasileira a disputar a canoagem em Olimpíada, em Barcelona-1992, avisa que o projeto nunca teve uma lancha para facilitar o deslocamento da professora até o meio do rio. Coisa básica em outros países.

Sem lancha, Camila tem de esgoelar na beira do rio para passar as instruções. Ou esperar que voltem. Aí, ela apoia o joelho em um dos degraus de pedra e dá seu recado. O apoio para os joelhos é feito com as borrachas dos tatames mais castigados pelo tempo – além da canoagem, a associação também ensina outras modalidades. Na sala de musculação, as anilhas e pesos trocaram de cor com a ferrugem dos anos.

A própria sede é, na verdade, apenas um lugar para guardar os barcos. Mal cabe todo mundo. Todos os alunos usam embarcações de fibras de vidro enquanto os atletas de ponta já estão com os de fibra de carbono, mais leves e mais rápidos, há muito tempo. Aqui, o problema é econômico: os primeiros custam R$ 3 mil; os outros, R$ 12 mil.

A qualidade da água está no limite do tolerável. Durante anos, ecologistas alertavam para o risco da destruição das matas ciliares, do despejo de esgotos sem tratamento e dejetos químicos de indústrias. Não adiantou. As margens abrigam sacos de lixo, latas de cerveja e roupa velha a poucos metros do local onde os meninos ouvem a tia Camila. Grande parte dos detritos da cidade vai parar no rio.

A Prefeitura paga um salário mensal de R$ 880,00 para cada uma das duas professoras do curso – a outra, Luciana Costa, está em licença-maternidade. A Superintendência dos Desportos do Estado da Bahia (Sudesb) e o poder municipal dividem as despesas de cerca de R$ 12 mil com alimentação, hospedagem e transporte para o Campeonato Brasileiro.

Na outra ponta, os atletas se viram para se manter com o Bolsa Atleta, destinado aos três melhores colocados no torneio nacional. São R$ 925 por mês. O atleta Caíque Brito, de 23 anos, será um dos beneficiados. Enquanto a verba não é liberada, ele concilia os treinamentos com o serviço de mototáxi. Ele conta que dá para equilibrar o orçamento com as corridas diárias. Se o atleta conseguir se posicionar entre os três primeiros colocados no ranking mundial, o Bolsa Pódio oferece 15 mil.

TRADIÇÃO – Os pilares da escolinha foram fundados simbolicamente muitas décadas atrás. A tradição da canoagem em Ubaitaba não se explica apenas com as canoas nativas – existem inúmeras cidades divididas por rios, mas que não formam atletas. O livro “Viagem pelo Brasil”, de Carl Friedrich Philipp von Martius e Johann Baptiste von Spix, aponta uma herança indígena. Os relatos de 1820 afirmam que aqueles habitantes já eram bons remadores. Em tupi, Ubaitaba reúne as palavras canoa pequena, rio e aldeia. “A canoa está no nosso sangue”, diz a professora Camila Lima.

Os registros mais recentes, guardados com esmero em uma pasta preta plastificada por Dijalma Medina, diretor técnico da associação, contam que a primeira competição esportiva foi disputada em 1985. No ano passado, uma grande festa marcou os 30 anos da canoagem na cidade.

Ubaitaba é o polo principal, mas as cidades de Ubatã e Itacaré também deram sua contribuição. Erlon Souza, campeão mundial ao lado de Isaquias, é de Ubatã.

Outra faísca importante foi lançada por Jefferson Lacerda. Trinta anos atrás, esse filho da terra deixou a mensagem “sim, é possível” ao levar sua canoa para os Jogos Olímpicos de Barcelona, na Espanha, em 1992. Hoje, um dos seus alunos, Figueroa Conceição, é técnico da seleção feminina sênior e da masculina cadete.

Outro empurrão veio do projeto Segundo Tempo, do Ministério do Esporte e da Confederação Brasileira de Canoagem. A ideia era democratizar o acesso à prática do esporte. Em 2005, o projeto descobriu Isaquias Queiroz, principal esperança de medalha da modalidade no Rio. O projeto acabou, mas a tradição continua com a escolinha.

Ficou faltando uma explicação importante: por que é tão importante atravessar o rio? O que existe do outro lado? Na cidade de Aurelino Leal, ficava uma estação de trem. Na cabeça dos moradores, além do trabalho e das compras, atravessar era um jeito simbólico de ganhar o mundo. Hoje, é no rio de Contas que estão ancorados os sonhos dos jovens de ganhar o mundo.

VIDEOCASSETE AJUDOU NOS JOGOS DE 92 – O ex-atleta Jefferson Lacerda pelas margens do rio de Contas, ele foi cumprimentado seis vezes. O integrante da primeira delegação brasileira da canoagem em uma Olimpíada (Barcelona-92) e responsável pelo pontapé inicial para colocar Ubaitaba no mapa da canoagem é uma celebridade na Bahia.

Aos 54 anos, Lacerda exibe com orgulho os “gominhos” da barriga, resultado de uma vida inteira dedicada ao esporte. Antes da canoagem, ele praticou handebol e caratê.

Nascido em Ubaitaba – hoje, ele vive em Itabuna, também no sul da Bahia -, ele tem todos os detalhes da aventura de 30 anos atrás na ponta da língua. Conta que, no começo, precisava usar remos remendados e toras de bananeira para aperfeiçoar o equilíbrio. Em 1987, os atletas treinavam no rio com caiaques de passeio, os chamados “surfinhos”. Destaque nas competições locais, Lacerda teve de vender um videocassete JVC, quatro cabeças, uma raridade na época, para financiar a viagem para a seletiva olímpica na raia da USP.

Com a vaga garantida, o baiano era um dos destaques do time. Disputou os Jogos no K2 (caiaque de dupla) nas provas de 500 e 1.000 metros, ao lado de Álvaro Kolowski, mas não se classificaram para as provas decisivas. Realizou o sonho, mas voltou frustrado. “O resultado poderia ter sido melhor, mas eu mostrei que era possível chegar à Olimpíada.”

Em 1996, quase conseguiu um repeteco. Em sua melhor fase, conseguiu a classificação para Atlanta e era uma esperança de medalha. Uma lesão no ombro impediu sua viagem.

A única coisa que faria diferente seria começar a canoagem mais cedo. Ele iniciou aos 27, chegou aos Jogos com 30 anos. Ao todo, são 70 medalhas de ouro em disputas individuais, duplas ou quádruplas. Ele participou de dois Mundiais, conquistou seis títulos sul-americanos e tem três medalhas de pan-americanos.

Foi técnico da seleção brasileira entre 1998 e 2006 e, por meio de cursos de intercâmbio, principalmente em Cuba, lançou as bases da modalidade na Bahia. Quando deixou o cargo, formou o técnico atual Figueroa Conceição, que foi seu aluno. Ele é um símbolo para os novos atletas e tem participação ativa na escolinha da Associação Cacaueira de Canoagem, entidade que ajudou a fundar lá atrás.

Por falta de incentivo e patrocínio – ele conta que não havia Bolsa-Atleta na época em que foi atleta -, ele sempre teve dois empregos. Há 28 anos, ele é avaliador judicial e oficial de justiça em Ubatã, cidade vizinha a Ubaitaba.

CRISE POLÍTICA ATRAPALHOU NOVO CT – A Federação Baiana de Canoagem afirma que a crise política do País prejudicou a construção de um centro de treinamento da canoagem na cidade de Ubaitaba. De acordo com o presidente Figueroa Conceição, o projeto já havia sido aprovado pelo Ministério do Esporte, mas acabou paralisado com a saída de George Hilton da pasta.

Com a posse de Ricardo Leyser, não existe prazo para a retomada do CT. Seriam investidos cerca de R$ 8 milhões na modernização da sede da associação de canoagem e a colocação de raias olímpicas no rio de Contas para as aulas, entre outras ações nas cidades próximas.

“A base tem de ser atendida. Precisamos de infraestrutura, mas não acho que estamos perdidos. Já vivemos situações muito piores”, diz Figueroa. “Temos de melhorar o que já temos, mas em Lagoa Santa (CT do time olímpico), tudo também é simples”, argumenta.

Figueroa afirma também que foram enviados 12 barcos de fibra de carbono para Ubaitaba e outros seis para Itacaré.