Há 150 anos, cientista inglês postulou que as “raças humanas” se formaram a partir das diferenças entre os sexos. Antropólogos dos EUA condenam sexismo e fazem conexões com o racismo no contexto da pandemia.Praticamente todo mundo já ouviu falar da teoria da seleção natural de Charles Darwin e de seu tratado A origem das espécies, de 1859. Muitos terão usado em algum momento a expressão “sobrevivência dos mais aptos”, provavelmente atribuindo-a ao naturalista inglês (embora, na verdade, ela a tenha tomado emprestada do filósofo Herbert Spencer, seu rival durante uma época).

Bem menos conhecida, porém, é a posterior A descendência do homem. Publicada em 24 de fevereiro de 1871, a obra explora a teoria de “seleção em relação ao sexo”, um processo que o cientista cria ser uma força complementar à transformação evolutiva.

Originalmente publicada em dois volumes, A descendência cobre diversos aspectos da vida animal e humana, indo de anatomia comparativa a faculdades mentais, a aptidão de empregar razão, moralidade, memória e imaginação, ou como os animais escolhem com quem ou o que fazer sexo.

A historiadora da ciência Janet Browne aborda as ideias darwinianas e as problemáticas que suscitam em A most interesting problem – What Darwin's Descent of man got right and wrong about human evolution (Um problema muito interessante – Em que a Descendência do homem de Darwin acertou e errou a respeito da evolução humana), recém-lançado pela Princeton University Press.

“Darwin propunha que a seleção sexual foi instrumental em explicar a origem do que ele chamava 'raças' humanas, e do progresso cultural”, escreve Browne. Ele argumentava que a seleção sexual explica por que os humanos se dividiram em diferentes grupos raciais, com a cor da pele e do cabelo como indicadores importantes.

No entanto, prossegue a professora de Harvard, para o naturalista “a seleção sexual entre os humanos podia também afetar características mentais como inteligência e amor materno”, até mesmo dentro dos grupos raciais, e ele escreveu: “O homem é mais corajoso, pugnaz e enérgico do que a mulher, e tem mais gênio inventivo.”

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“Acho que na verdade Darwin estava tentando explicar as raízes biológicas do desenvolvimento histórico da civilização. Ele achava que a seleção sexual era um fator importante também no desenvolvimento da mente humana.” A autora considera tais ideias problemáticas – e crê que não está só.

O poder do viés cultural

De fato: embora considerando A origem das espécies “simplesmente espetacular”, Jeremy DeSilva, antropólogo do Dartmouth College e editor de A most interesting problem, admite ter ficado dividido ao ler A descendência do homem.

Por um lado, Darwin teve um “insight incrível” sobre como os humanos estão conectados com outros organismos e são parte de um processo grandioso, deduzindo “que todo organismo tem uma história evolutiva, e nós também”. “Ele descobriu uma pista quente, e montou o palco para próximo século de pesquisa, ou mais”, admira DeSilva.

Do outro lado da medalha: “Eu lia esses capítulos sobre diferenças de raça e sexo e simplesmente me encolhia de constrangimento. Uau, como ele errou a mão! E por quê? Ele era simplesmente um produto de sua época? Ou apenas tinha esses profundos vieses na qualidade de britânico privilegiado?”

O problema é que Darwin poderia ter se saído melhor, mesmo em plena era colonial britânica, deveria ter sido mais sagaz, argumenta o antropólogo. “Ele dispunha dos dados para tal, não é que não fosse capaz de ir contra a maré da época. Afinal, ele escreveu A origem das espécies!”

“Prezado senhor… Antoinette”

Contudo às vezes o naturalista inglês não era capaz de ver o que estava diante de seus olhos, pontifica DeSilva. “Ele lançou a hipótese de que deveria haver fósseis de antigos humanos, e no entanto, como nunca havia visto um, quando lhe levam um fóssil, ele não consegue ver.”

“Nós celebramos Darwin – e devemos celebrar – por suas ideias e sua incrível capacidade de observação, experimentos, as perguntas que fez e sua fascinação pelo mundo. Portanto aí está esse mestre da observação. Mas quando lhe apresentam um crânio fossilizado, ele não diz muita coisa a respeito”, acrescenta o antropólogo.

Em outro episódio, depois de A descendência do homem, Antoinette Brown Blackwell, a primeira ministra protestante ordenada dos Estados Unidos, escreveu The sexes throughout nature (Os sexos em toda a natureza), abordando ideias de igualdade, do qual enviou cópias a Darwin.

“Ele responde, e sua carta começa: 'Prezado Senhor'”, espanta-se DeSilva. “Eu me pergunto: ele sequer conseguia imaginar que uma mulher tivesse escrito um livro?”


Holly Dunsworth, bioantropóloga da Universidade de Rhode Island e também colaboradora do livro de Janet Browne, responde à pergunta de forma bastante sumária: para ela, foram “os homens e as tradições patriarcais” que impediram as cientistas do sexo feminino de se destacarem no tempo de Darwin.

Racismo, do século 19 à pandemia

Lendo A most interesting problem, tem-se a impressão de que Charles Darwin se encontrava num conflito interior, entre suas observações, suas tendências, e os vieses da época. E às vezes parece que ele simplesmente ignora sua própria ciência.

Segundo o primatólogo e bioantropólogo Agustín Fuentes, da Universidade de Princeton, Darwin discute “se as assim chamadas 'raças' de humanos derivavam de ancestrais diferentes (a tese dos poligenistas) ou se tinham um ancestral comum distante (monogenistas). Ele certamente estabeleceu uma reputação para a divisão biológica das pessoas em linhagens, e aí faz uma afirmação cultural tendenciosa do tipo: 'Sim, sim, tem tudo isso, mas sabemos que essa gente não é tão adiantada, não é tão esperta e não é capaz de sobreviver'.”

“Então, para mim, isso realmente mostra como o racismo funciona: a questão não é o indivíduo racista, são as estruturas de crença sistêmicas que perpetuam essas coisas.” E essas estruturas permanecem até hoje, afirma Fuentes. Isso se aplica às atitudes em relação às populações indígenas das Austrália e dos EUA, e, talvez de forma mais ampla, às desigualdades no contexto da atual pandemia de covid-19.

“Tome como exemplo os EUA e o Reino Unido, onde vemos taxas completamente diferentes de mortalidade e morbidade, infecção e morte, conforme a pessoa tenha pele parda ou não. Então, não há uma única razão biológica para tal, isso é produto do racismo sistêmico, criando corpos e vidas desiguais”, afirma o antropólogo americano.

“É exatamente o que Darwin via e interpretava errado, como evidência de seleção natural, quando o que estamos vendo, na realidade, são paisagens locais, sociais e ecológicas criando divisões culturais que são incorporadas às pessoas”, acrescenta Fuentes.

E se Darwin vivesse hoje?

Apesar de todo rigor em relação ao naturalista nascido em 1809, Fuentes acredita que nos tempos atuais ele teria “defendido a ausência de 'raças' biológicas”. DeSilva também parte do princípio que, “sabendo o que sabemos hoje em dia”, Darwin teria formulado diferente A descendência do homem, 150 anos depois.

Dunsworth, porém, é menos complacente. “Ele poderia fazer melhor hoje, porque se beneficiaria de todos nós, que estamos fazendo melhor do que ele fazia!” Segundo ela, uma das vertentes do livro A most interesting problem é pensar “no prazer que Darwin poderia ter tido em saber o que sabemos hoje”.

“Mas não me sinto confortável ou interessada em imaginar coisas pessoais assim sobre ele, e talvez seja porque estou zangada com ele e não quero ceder uma parte de mim. Darwin era abastado e bem conectado. Suas ideias, caso publicadas agora, seriam escutadas, e antropólogos e muitos outros estariam apagando incêndios por toda parte.”

A pesquisadora prossegue, citando uma lista de discussões e intelectuais controversos, como Steven Pinker e Richard Dawkins, e “políticos que ainda comparam opositores de cor a primatas não humanos, todo tipo de gente com todo tipo de poder que pensa que mulheres e homens evoluíram separadamente para ter os papéis de gênero estereotipados do patriarcado, de modo a beneficiar a espécie, etc., etc….”


Como diz Jeremy DeSilva, o viés é uma coisa poderosa.


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