OBEDIÊNCIA Mário Frias, secretário de Cultura: “filme faz apologia à pedofilia” (Crédito:Mateus Bonomi )

O governo de Jair Bolsonaro é um deserto tão vasto de ideias e propostas, que só resta a seus ocupantes atiçar a militância por meio de uma constante guerra cultural, sem qualquer benefício efetivo para o povo brasileiro.  A falta de bom senso é tão evidente que a nova investida feita pela ala mais radical do bolsonarismo não é sequer uma novidade, mas um filme lançado em 2017. O alvo da vez é Como se Tornar o Pior Aluno da Escola, comédia estrelada por Fábio Porchat e inspirada no livro homônimo do humorista Danilo Gentili, que também atua no longa. Disponível nas plataformas de streaming Globoplay, Netflix, Google, Amazon e Apple, a produção traz uma cena em que o personagem de Porchat, um vilão, pedófilo, assedia sexualmente dois menores.

“Assim que tomei conhecimento de detalhes asquerosos do filme, determinei que os vários setores do ministério adotem providências cabíveis para o caso” Anderson Torres, ministro da Justiça (Crédito:Mateus Bonomi / AGIF)

Após o assunto ser disseminado pelas redes sociais, estratégia geralmente associada ao chamado gabinete do ódio, ligado ao Palácio do Planalto, o secretário especial da Cultura, Mário Frias, entrou na briga com um post nas redes sociais: “R$ 3 milhões de dinheiro público foram investidos para financiar apologia à pedofilia travestido de humor”, afirmou. A referência à verba estatal diz respeito ao uso de R$ 3,2 milhões por meio de leis de incentivo previstas no Fundo Setorial do Audiovisual (FSA). “Molestamento e pedofilia não é humor, não é piada e muito menos liberdade de expressão”, completou. Enquanto a retórica bolsonarista estava restrita às redes sociais, seria apenas mais combustível para a polêmica vazia. Isso, porém, não foi suficiente para o ministro da Justiça e da Segurança Pública, Anderson Torres, cujo cargo não lhe impediu de atentar contra a Constituição apenas com o objetivo de agradar o presidente Bolsonaro: Torres exigiu que as plataformas retirassem o conteúdo do ar, sob pena diária de R$ 50 mil. É chocante que o ministro da Justiça não conheça as leis do País, uma vez que a censura iria contra o inciso 9 do artigo quinto da Constituição, que garante a liberdade de expressão. O Ministério da Justiça já havia feito a classificação indicativa do longa em 2017, recomendando que ele não fosse visto por menores de 14 anos.

VILÃO Fábio Porchat, no papel do personagem que gerou polêmica: ator ironizou a incapacidade do governo de diferenciar a realidade da ficção (Crédito:Divulgação)

Para completar a confusão institucional e explicitar ainda mais o caráter ideológico da decisão, a tentativa de censura partiu de um órgão sem nenhuma relação com a área, a Secretaria Nacional do Consumidor. O novo secretário, Rodrigo Roca, tem um currículo invejável para os padrões bolsonaristas: defendeu militares acusados de tortura, entre eles o general Carlos Alberto Brilhante Ustra, ídolo do presidente, e é ex-advogado de Flávio Bolsonaro no caso em que o senador é acusado de ter praticado rachadinhas em seu gabinete.

Como as empresas se recusaram a cumprir a decisão inconstitucional de retirar o filme de suas plataformas, restou ao governo alterar a classificação indicativa de 14 para 18 anos e sugerir que ele só seja exibido na TV aberta após as 23 horas. Mesmo assim, a pasta atropelou processos internos: esse tipo de avaliação, que costuma levar 30 dias, foi feito em 24 horas. O resultado foi o contrário do que esperavam: Como se Tornar o Pior Aluno da Escola apareceu entre as três atrações mais vistas da Netflix.

CRÍTICA Daniel Pimentel: “Tirar das plataformas é censura, né? E censura no século 21 é retrocesso”, criticou o ator nas redes sociais (Crédito:Divulgação)

Em resposta, Danilo Gentili, ex-bolsonarista e hoje apoiador de Sergio Moro à Presidência, publicou uma imagem de Mário Frias na novela Mutantes, da RecordTV, em que seu personagem agride uma mulher. “Que cena horrível que incentiva a violência contra as mulheres. Isso passou em TV aberta? E se uma criança assiste? Deveríamos censurar?”, provocou. Já Fábio Porchat abusou da ironia: “Marlon Brando interpretou o papel de um mafioso que mandava assassinar pessoas. Renata Sorrah roubou uma criança da maternidade e empurrava pessoas da escada. Regiane Alves maltratava idosos. Mas era tudo mentira, tá, gente? Essas pessoas na vida real não são assim”, afirmou, ao jornal “O Globo”. Enquanto os brasileiros sofrem com diversos problemas, seria mais útil se o governo perdesse menos tempo com cortinas de fumaça, olhando mais para a realidade e menos para a ficção.