O general da reserva Carlos Alberto dos Santos Cruz, 68 anos, passou seis meses como ministro de Jair Bolsonaro, à frente da Secretaria do Governo. Deixou o cargo em junho do ano passado, demitido por causa de uma rede de intrigas criada contra ele pelo guru Olavo de Carvalho e pelo filho 02 do presidente, Carlos. Desde então, se tornou um observador crítico da atuação do presidente e do papel das Forças Armadas no governo. Ex-comandante das tropas da ONU no Haiti e no Congo, Santos Cruz é um oficial legalista, que preza a cultura de responsabilidade e de isenção política das instituições militares e acredita que o mandatário perdeu a oportunidade de exercer uma liderança forte durante a pandemia. Ele viu com espanto também as ameaças de intervenção militar que circularam há dois meses. “O que houve foram interpretações que considero completamente sem amparo, sem base nenhuma. Foi uma tentativa de arrastar as instituições militares para o debate político, de usá-las como instrumento de pressão”. disse Santos Cruz para a ISTOÉ. “Mas não acredito que no Brasil, com a cultura militar que nós temos, haja políticos que consigam provocar uma divisão nas Forças Armadas”.

O senhor vê a possibilidade de intervenção militar? Há dois meses isso parecia real.
Há dois meses estava muito forte. Mas acho que nunca houve esse risco. O que houve foram interpretações que considero completamente sem amparo, de uma tentativa de arrastar as Forças Armadas para uma intervenção militar, de usá-las como instrumento de pressão por questão de conveniência e de interesse pessoal. Mas isso não arranhou as Forças Armadas. Não houve possibilidade de intervenção. Não tem cabimento. Você tem um presidente eleito, um Congresso eleito e um Judiciário que pode ter problemas de funcionamento, mas é formado de acordo com o que está previsto. Você tem também uma sociedade fácil de ser mobilizada através das mídias sociais para se manifestar sobre os problemas nacionais. Para que você vai tentar arrastar as Forças Armadas para esse debate? É completamente desnecessário. Nós passamos dois meses assim, com as instituições militares sendo arrastadas todo dia para esse debate político.

A politização na caserna está aumentando?
Em primeiro lugar, os militares, de soldado a general, são eleitores e votam em quem quiserem. Só que quando colocam um uniforme e estão representando a instituição, têm que seguir a orientação do comandante e não ficar ali discutindo política. Os militares têm uma cultura de não falar de política dentro dos quartéis. Isso é uma cultura, algo que é seguido. Quem dá orientação institucional é o comandante e a estrutura de comando é muito forte. No caso do Exército, por exemplo, você tem um comandante que é um sujeito altamente preparado. Ninguém chega lá sem se destacar em todas as fases de sua carreira. Você pode ter, é claro, uma ou outra discrepância, mas no geral a estrutura é extremamente sólida. Não acredito que no Brasil, com essa cultura militar, haja políticos que consigam fazer uma divisão interna das Forças Armadas.

E a participação dos militares no governo?
Há um grande número de militares hoje trabalhando no governo. Isso é fato. E uma consequência disso para o público em geral é a sensação de que as instituições militares estão vinculadas aos assuntos de governo. Na verdade, elas estão vinculadas a políticas públicas, de Defesa, Segurança, colaboração entre os ministérios e de auxílio na Amazônia e no combate à Covid-19. A instituição militar participa de políticas públicas para auxiliar a população, não participa do varejo político, de discussões de posicionamento de governo ou de embates do Executivo com o Judiciário ou com o Legislativo.

Qual é a diferença de mentalidade entre os militares da reserva e os que estão na ativa?
O militar da reserva, quando aceita um convite para assumir uma função qualquer no governo, assume uma responsabilidade pessoal. Ele está fora das Forças Armadas e a responsabilidade é apenas dele. Quando o militar é da ativa, a situação é completamente diferente, porque ele, inclusive, tem a possibilidade de sair do governo e voltar para a função militar. Aí você fica com um vínculo estabelecido, que não deveria existir. Se o militar da ativa sair do governo e voltar para as Forças Armadas, ele trará a imagem do comprometimento com o governo. É muito prejudicial.

E o caso específico do general Eduardo Pazuello?
O caso dele se enquadra no do militar da ativa que vai exercer uma função no governo. Pode ter todos esses reflexos que acabei de falar. Todo governo tem erros e acertos, independentemente da linha ideológica, e qualquer instituição que tiver sua imagem vinculada ao governo carregará as consequências desses erros e acertos. Isso não é bom para as instituições. O caso do Pazuello não deveria acontecer. Deveria ir para a reserva. Você viu que quando o ex-ministro Sergio Moro foi exercer uma função política de ministro da Justiça, ele teve que pedir demissão do Judiciário. E não foi nem aposentado proporcionalmente.

O governo prevê um orçamento maior para a Defesa do que para a Educação em 2021. Como avaliar essa opção?
Em primeiro lugar, é preciso olhar os detalhes desse orçamento. Tem que ver o detalhamento, o pagamento de pessoal da reserva, do pessoal da ativa, porque depois disso sobra uma quantia pequena para bancar o funcionamento e o investimento na área militar. Tem que ver o que há de despesa obrigatória. A proposta vai para o Congresso, onde caberá discutir e ajustar o orçamento. Acho que as comissões do Senado e da Câmara devem tratar o assunto de uma maneira profunda, coisa que às vezes falta no Brasil. A manchete de que o orçamento da Defesa é maior que o de Educação é chocante. Como manchete é chocante, mas é preciso detalhar a proposta.

Como o senhor vê a atuação do governo na pandemia?
Acho que foi mal conduzida desde o início. Era uma oportunidade para o presidente exercer a liderança no País, chamando os governadores e outros setores da sociedade para o diálogo. Deveria chamar o Congresso, o STF e outras instituições, pedindo para se deixar de lado a parte ideológica. Era o momento de unir todo mundo para enfrentar um assunto de difícil entendimento, porque a própria medicina não o domina. Mas não houve essa liderança. Pelo contrário. Houve muita disputa, até interna, dentro do governo, com o presidente ignorando recomendações dadas pelo seu Ministério da Saúde. Isso deixou a população perdida e insegura nos procedimentos e nos protocolos. A gente entende que o assunto não está completamente dominado, vários medicamentos estão sendo usados, mas isso é uma questão médica. E o que a gente viu foi a politização até de medicamentos. Depois ficou difícil, no meio do caminho, de acertar o passo. Não é um problema de culpa pessoal, mas perdeu-se a oportunidade de união nacional.

O governo decidiu politizar a doença?
Houve excesso de politização. E faltou informação técnica. Era preciso se dedicar à parte técnica para dar boas orientações e até para aplicar melhor os recursos. O STF despachou sobre a autonomia de cidades e estados para tomarem as suas medidas, mas o dinheiro público poderia ter sido melhor utilizado. Poderiam ter centralizado algumas compras, o que não tinha nada a ver com a decisão do STF. Além disso, quando se distribui tanto dinheiro assim, você tem que montar um sistema de fiscalização, ainda mais com dinheiro usado numa situação emergencial, em que se pode comprar tudo sem licitação.

Com uma liderança forte, a perda de mais de 110 mil vidas poderia ter sido evitada?
Talvez, porque você tem alguns exemplos de países organizados em que os problemas estão sendo menores. Mas, de um modo geral, onde há união nacional, onde a técnica é bem conduzida, se vê melhores resultados. E aqui a gente fica com os governadores acusando o presidente e o presidente acusando os governadores. Isso é perda de tempo.

Podemos dizer que o presidente Bolsonaro demorou para começar a governar?
É nítido que o governo inicialmente tinha uma visão muito ideológica e, num segundo momento, passou a se voltar para a reeleição. Há uma ênfase na ideologia muito forte. Porque a campanha lá atrás foi ideológica. Não foi uma campanha em que se discutiram os assuntos nacionais. Até porque, o presidente não participou da campanha, não houve debate. Foi só uma grande guerra ideológica nas mídias sociais. Ninguém precisou dizer, no caso do vencedor, o que iria fazer e como iria fazer. Ficamos na superfície da briga ideológica no WhatsApp e no Twitter. Isso continuou e só parou agora por causa de outros acontecimentos, até de caráter particular envolvendo o presidente.

O senhor já mencionou que Bolsonaro se ampara em um pequeno grupo ideológico de fanáticos para governar. Esse grupo continua forte?
Nos últimos dois meses houve uma diminuída, mas foi circunstancial. O problema é o entusiasmo fanático de seguidores. Não é tanta gente, mas eles acabam ganhando mais visibilidade. Nós temos extremos hoje na direita e na esquerda. Só que a grande massa ainda é de centro. A população equilibrada, mais silenciosa, quer resultados e não quer ficar fazendo festa na internet ou dar demonstrações de fanatismo ideológico.

Como o senhor vê a atuação política do presidente?
O governo foi para uma linha que ele mesmo condenava: a aproximação com o Centrão. Sempre falei que negociação política não é crime, mas você tem que negociar políticas públicas e não interesses pessoais. Se você acha que colocar decisões sobre um grande orçamento na mão de pessoas que serão capazes de gerenciar melhor o recurso público, isso é uma coisa. Agora, se é só para apoio político, para atender interesses específicos, não tem validade. A mesma pessoa que criminalizava o toma lá, dá cá, agora o adota. Isso não pode, é incoerência.

E quais são seus planos para o futuro? Uma carreira política?
Nunca tive esse tipo de plano. Fiz carreira no Exército. Fui convidado para o governo e aceitei porque acreditava no projeto. Não fui para lá por admiração pessoal. Fui por consideração pessoal e funcional, acreditando que poderia ajudar no governo. Mas não tenho um projeto político. O interesse pela vida política, se ele tiver que acontecer, será de maneira espontânea, não haverá planejamento. Tem gente que convida, partidos políticos que convidam, mas plano eu não tenho. Se acontecer, vai ser na hora certa e estarei pronto.