Durou pouco a moderação de Jair Bolsonaro após o primeiro turno das eleições. O plano de sua campanha era renovar a imagem do presidente como um político fiel à democracia e até humilde, para que ele ampliasse seu eleitorado no dia 30. A bonança econômica obtida com medidas artificiais, que levaram a um terceiro mês de deflação, anunciada na última terça-feira, fariam o resto. Uma semana depois, seu verdadeiro projeto de reeleição já tinha sido escancarado. Seus aliados tentaram votar uma lei criminalizando os institutos de pesquisa, ele anunciou que mudaria a composição do Supremo Tribunal Federal para controlar a Corte e convocou os apoiadores para cercarem as seções eleitorais no dia da votação “até o final da apuração”, numa tentativa de intimidar a Justiça Eleitoral.

Essa retomada da retórica golpista apenas ilustra um plano que o mandatário sempre cultivou. E ele faz parte de um script que tem sido usado por extremistas de todo o mundo. Os golpes do século XXI não acontecem mais com tanques fechando Parlamentos ou com militares ocupando rádios e TVs. Ao conquistar um segundo mandato, a história ensina, os autocratas modernos conseguem minar a democracia por dentro, mudando a Constituição, cooptando as instituições e subjugando os outros Poderes. Bolsonaro, na verdade, apenas cumpre o beabá do populismo, característico da trajetória de ditadores como Nicolás Maduro, na Venezuela, e Viktor Orbán, na Hungria. Este último, aliás, é grande amigo do presidente e se ofereceu para ajudar na sua reeleição.

O plano para avançar sobre o STF está trilhado. Alguns balões de ensaio já haviam sido lançados, como o impeachment de ministros ou a subordinação da Corte a decisões do Legislativo. Agora, a tática consiste na votação de uma proposta de Emenda à Constituição para ampliar o número de assentos do tribunal de 11 para 15, caso o presidente vença o segundo turno contra Lula. É bom lembrar que Bolsonaro já preparou o terreno demonizando publicamente os ministros Alexandre de Moraes, Luis Roberto Barroso e Edson Fachin, com a ajuda das redes sociais, uma forma de propaganda negativa usada à farta pelos novos autocratas.

A nova norma é defendida por notórios aliados do presidente. “O que existe, hoje, é um ativismo do Supremo muito acentuado. Há, por exemplo, posicionamentos políticos públicos de ministros que não contribuem para a isenção que a Justiça deve ter”, afirma Ricardo Barros (PP-PR), líder do governo na Câmara. “Eu fui relator da Lei de Abuso de Autoridade e o texto acabou aprovado por unanimidade. Por quê? Porque, naquele momento, a Justiça estava se comportando de tal forma que todos achavam que ela precisava ser enquadrada. E foi isso que ocorreu. Quem provoca a reação é quem conduz a ação. Nesse caso, é o Supremo que está avançando na prerrogativa de outros Poderes”, argumenta.

RETRATO Os 11 ministros do STF e o PGR Augusto Aras (acima): presidente quer aumentar o número de magistrados para conseguir o controle da Corte (Crédito:Divulgação)

A tese não se sustenta, obviamente. Não cabe aos parlamentares, ao Executivo e nem a ninguém que tenha tido interesses contrariados “enquadrar” os magistrados ou moldar o Judiciário de acordo com suas pretensões. É uma fórmula tão estapafúrdia (e inconstitucional) como considerar que as Forças Armadas são um Poder moderador. No STF, a PEC em gestação é vista por ministros como um blefe. A maior parte dos magistrados lembra que o texto fere a separação de Poderes, uma cláusula pétrea da Constituição.

“Uma medida que altera a composição do STF só pode passar pelo Legislativo se for o presidente do Judiciário o autor da matéria”, pontua o interlocutor de um magistrado. Alguns juristas, porém, lembram precedentes que poderiam embasar a investida, como a PEC da Bengala, que aumentou de 70 para 75 anos a idade da aposentadoria de ministros do STF, dos demais tribunais superiores e do Tribunal de Contas da União.

Além do próprio presidente, o vice defendeu a PEC. Hamilton Mourão já sugeriu mandatos aos ministros, redução da idade de aposentadoria e limitar as decisões monocráticas. Com a péssima repercussão, o presidente disse que poderia descartar a ideia da PEC para “baixar a temperatura”. O presidente da Câmara, Arthur Lira, seu aliado, disse que “o momento não é adequado”.

A mudança garantiria maioria no Supremo a Bolsonaro, que já indicou Kassio Marques e André Mendonça ao tribunal. Num segundo mandato, ele poderia designar os substitutos de Ricardo Lewandowski e Rosa Weber, que se aposentam em 2023.

Com mais quatro nomes para escolher, contaria com a maioria simples do plenário. Teria ascendência sobre oito dos 15 ministros. Algo similar aconteceu somente à época da ditadura, quando o Ato Institucional número 2 aumentou de 11 para 16 a quantidade de magistrados do STF.

“Subjacente a essa modificação, visa-se, na realidade, à perversa e inconstitucional finalidade de controlar o STF e de comprometer o grau de plena e necessária independência que os magistrados e os corpos judiciários devem possuir”, declarou o ex-ministro Celso de Mello.

SEM COMENTÁRIOS O ministro da Defesa, Paulo Sérgio Nogueira, acatou a ordem para fazer uma “checagem paralela” das urnas, mas se calou sobre o resultado, que atestou a lisura do sistema (Crédito:Gabriela Biló)

Trata-se de saudosismo da ditadura, disparou outro ex-ministro, Marco Aurélio Mello. “No regime de exceção houve o aumento para 16. Logo a seguir a razão imperou. É um arroubo de retórica que não merece o endosso dos homens de bem. O meio justifica o fim e não o inverso”, falou. Carlos Ayres Britto, igualmente, diz que a ideia é inconstitucional e inviável, pois fere o artigo 101 da Constituição, que fixa em 11 o número de magistrados. Segundo ele, nem é possível fazer a alteração por emenda, porque seria necessário mexer na Lei Orgânica da Magistratura, que é uma prerrogativa privativa do STF.

Não se trata de uma ideia nova, motivada pela irritação com decisões da Corte contra a gestão atual. Bolsonaro já defende essa intervenção no Judiciário desde 2018, antes de se eleger, quando propôs ampliar de 11 para 21 o número de ministros. No governo, seu projeto de reforma da Previdência incluía um jabuti, artigo que facilitaria baixar a idade-limite dos ministros do Tribunal por meio de lei complementar. Isso aumentaria e rotatividade e permitiria a indicação de nomes alinhados com Bolsonaro. O plano era aposentar compulsoriamente mais da metade da Corte.

A última investida, na avaliação do cientista político Creomar de Souza, não impressiona à primeira vista, porque Bolsonaro é uma persona política que se forjou com a ideia de contestar a ordem, tendo demonstrado esse traço como militar, deputado e presidente. Segundo o analista, o presidente dissemina a ideia de que trabalha para garantir à população uma “democracia aprimorada”. “Bolsonaro está na mesma página de Alberto Fujimori, Hugo Chávez, Orbán. Em 30 de outubro, vamos descobrir se a maior parte da população concorda com ele e busca uma democracia iliberal. O grande problema dessa escolha é que, diferentemente de uma democracia tradicional, você não tem ponto de retorno — ou melhor, o ponto de retorno tem custos muito altos”, pontua.

O discurso belicoso contra o Supremo voltou após o resultado do primeiro turno, quando, apesar das recorrentes ameaças à democracia, o presidente conquistou 51 milhões de votos, ficando mais próximo de Lula do que as pesquisas apontavam. O PL, seu partido, elegeu as maiores bancadas da Câmara e do Senado. “Imagine um ator político que era bombardeado todos os dias com o fantasma de que perderia no primeiro turno, com uma diferença de até 10 pontos. Ele chega ao domingo de eleição, vai ao segundo turno e vê uma diferença de apenas 5,23 pontos percentuais. Querendo ou não, o resultado acabou avalizando a narrativa pela ‘desconstrução do jogo político’. O que não se pode fazer mais uma vez é subestimar a capacidade de ele ler o cenário, operar mudança, cooptar atores para o seu lado e manter a base mobilizada”, diz Souza.

Especialistas e políticos creem que o segundo turno será um grande plebiscito sobre a Constituição de 1988 e, portanto, sobre a democracia. Aqueles que não se sentem representados pelas regras do jogo miram a construção de novos grupos políticos, de olho em 2026 ou acomodaram-se no arco de alianças de Bolsonaro, como os governadores recém-reeleitos Cláudio Castro (RJ) e Ratinho Jr. (PR). “Bolsonaro é muitas vezes impulsivo nas suas falas, mas nunca vi uma delas fazer um país democrático deixar de sê-lo. E já vi muitos partidos de esquerda que não falam nada enviarem na surdina para o Congresso pautas que restringem a atuação dos meios de comunicação”, declarou Romeu Zema, governador reeleito de Minas que apoia Bolsonaro. A aproximação de nomes de centro por conveniência, no entanto, ignora o histórico do capitão, que mantém fidelidade somente à família e àqueles que seguem sua cartilha sem questionamentos.

“O Supremo está avançando na prerrogativa de outros Poderes. Quem provoca a reação é quem conduz a ação” Ricardo Barros, líder do governo na Câmara (Crédito:Mateus Bonomi )

Se o presidente ganhar um novo mandato, seus avanços não se limitarão ao STF. O Exército será ainda mais instrumentalizado. Os militares demonstraram subserviência ao Planalto durante toda a preparação para as eleições, ao bombardearem o TSE com questionamentos sobre a confiabilidade das urnas. Em um dos atos mais ousados, sob a batuta do ministro da Defesa, general Paulo Sérgio Nogueira, os fardados esboçaram uma inédita “checagem paralela” dos votos para comparar os números de cerca de 385 boletins de urnas aos resultados oficiais. A análise, segundo militares ouvidos sob reserva, está pronta e não apontou qualquer discrepância. Mas a Defesa se nega a apresentar o relatório, de novo fazendo parte do jogo eleitoral do presidente. Nomes envolvidos declaram que a ordem de silêncio partiu de Bolsonaro, que, insatisfeito com a conclusão do trabalho, afirmou que todos deveriam se esforçar mais, já que as informações não batiam com o que ele próprio soube do assunto, como noticiou “O Globo”. Bolsonaro irritou-se ao ser questionado a respeito: “Quem falou que eu recebi relatório?” A negação coincide com a tática de deixar momentaneamente de lado as críticas às urnas eletrônicas, porque seu QG de campanha considerou que o tema estava se transformando em um “tiro no pé”.

No Congresso, os aliados do governo aceleraram a tramitação de um projeto para criminalizar os institutos de pesquisa. Uma proposta do próprio Barros prevê penas de 10 anos de prisão para responsáveis de institutos de pesquisa que tenham “errado” o resultado. Ocorre que os institutos acertaram ao indicar a possibilidade de Lula vencer no primeiro turno. Faltou apenas 1,57 ponto percentual para o petista ganhar no primeiro turno. Na Procuradoria-Geral da República, as perspectivas também são preocupantes. Subprocuradores avaliam que, caso Bolsonaro vença o segundo turno, o órgão permanecerá totalmente alinhado aos interesses do capitão, embora Augusto Aras não possa ser reconduzido ao cargo. Seu papel de subordinado ao Executivo caberia, segundo a bolsa de apostas, a Lindôra Araújo, atual número dois da instituição.

Também há o temor de maior aparelhamento da Abin e da própria PF, o que já motivou uma investigação no STF, a partir de denúncia feita pelo ex-juiz Sergio Moro – que, eleito para o Senado, voltou a apoiar Bolsonaro. Uma mostra do risco de uso político da corporação ocorreu na última semana. O afastamento do governador de Alagoas, Paulo Dantas, do MDB, um apoiador de Lula que concorre à reeleição, foi determinado pela Justiça a pedido da PF na reta final da corrida eleitoral em um processo antigo sobre rachadinhas. A ação gerou críticas de interferência, já que parte da corporação, sabidamente, segue as orientações do presidente.

Intervenção no STF, criminalização das pesquisas, ataques às urnas eletrônicas, aparelhamento da polícia e compra do Congresso por meio do orçamento secreto fazem parte de um mesmo projeto autocrático. Bolsonaro avançou em suas investidas após a expressiva votação no primeiro turno, renovando seu discurso contra as instituições. O suspense vai durar até o próximo dia 30, quando a população decidirá se escancara ou não as portas para o autoritarismo. Ele vai conseguir uma carta branca para avançar no golpe?

Os ditadores modernos

Bolsonaro segue a mesma cartilha dos novos autocratas que usaram brechas da democracia para impor regimes autoritários

Hugo Chavez

O militar chegou ao poder pelo voto depois de tentar um golpe. Com a reeleição, aumentou de 20 para 32 o número de juízes do
Tribunal Supremo de Justiça, consolidando a ditadura

Viktor Orbán

O premiê da Hungria aumentou de 11 para 15 o número de membros da Corte Constitucional um ano após voltar ao poder, em 2011. Com uma nova Constituição, trocou mais de 250 juízes

Daniel Ortega

O ditador da Nicarágua ganhou o quarto mandato consecutivo no ano passado após mandar prender os opositores. Fechou jornais, perseguiu jornalistas e passou a atacar a Igreja Católica

Nayib Bukele

Após obter a maioria nas eleições legislativas de 2021, o presidente de El Salvador conseguiu que o Parlamento destituísse cinco magistrados da Sala

Entrevista

“O presidente pretende a monocracia” Joaquim Falcão, jurista

Qual seria o impacto da ampliação do número de assentos na independência do Supremo?
Muito ruim. A característica básica da democracia é que não existe poder ou autoridade sem controle. O que pretende o presidente é a monocracia, em que as decisões dele não sejam controladas por nenhum poder.

ALERTA Joaquim Falcão diz que presidente quer agir sem controles (Crédito:Marcelo Chello)

Crê que a medida irá para frente?
Em campanha, vale tudo. Mas não acredito que uma decisão complexa como essa de aumentar o número de ministros seja viável, porque você teria a possibilidade de o próprio STF barrá-la por causa da cláusula pétrea. É um desgaste não apenas jurídico, mas econômico, porque a sociedade ficaria numa instabilidade e incerteza que não conviria à política ou à gestão do Estado. É transformar a gestão do Estado numa arena sem juiz e sem fim.

Alguma mudança no STF é pertinente?
O mandato para ministros não esbarra na cláusula pétrea. A grande parte dos mandatos tem média de 12 ou 14 anos. Isso seria saudável para o Brasil, para uma mudança geral no Supremo. Hoje, a sociedade precisa de decisões atuais, rápidas e condizentes com a velocidade da civilização. Há também a questão do pedido de vista, que não acaba nunca. O ministro controla as decisões. Proponho que se mude para um pedido de prazo pré-fixado.